7.30.2007

No exacto automóvel

shane_painting_small.jpg image by TheGudmen1

No exacto automóvel, viajamos.
Em corpo e nervos, sal, angústia, grito.
Suor, temor da noite, aonde vamos?
Direita, esquerda? (Cruzamento) . Hesito.

Onde? Por onde? Somos dois, calados.
A chuva alaga o universo à volta.
A beira d'água, acenam-nos soldados.
Soam no escuro os passos de uma escolta.

Finco as mãos no volante. Derrapagem
ou medo apenas do que vai comigo?
Já está próximo o termo da viagem.
Apertamos as mãos. "Saúde, amigo".

Daniel Filipe (poeta caboverdiano)

O verbo no infinito



Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar

Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.

E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito

E esquecer de tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito...

Vinicius de Moraes (poeta brasileiro)

7.29.2007


Retrato com Sombra


Que morte é a sombra deste retrato,
onde eu assisto ao dobrar dos dias,
órfão de ti e de uma aventura suspensa?

Tu não eras só este perfil.
Tu não eras só este sossego aconchegado
nas mãos como num regaço.
Tu não eras apenas
este horizonte de areia com árvores distantes.

Falta aqui tudo o que amámos juntos,
o teu sorriso com as ruas dentro,
o secreto rumor das tuas veias
abrindo sulcos de palavras fundas
no rosto da noite inesperada.
Falta sobretudo à roda dos teus olhos
a pura ressonância da alegria.

Lembro-me de uma noite em que ficámos nus
para embalar um beijo ou uma lágrima,
lutando, de mãos cortadas, até romper o dia,
largo, intacto,
nas pálpebras molhadas dos lírios.

Tu não eras ainda este perfil
com uma rosa de cinza na mão direita.
Eu andava dentro de ti
como um pequeno rio de sol
dentro da semente,
porque nós - é preciso dizê-lo -
tínhamos nascido um dentro do outro
naquela noite.

Esse é o teu rosto verdadeiro;
aquele rosto que vou juntando ao teu retrato
como quando era pequeno:
recortando aqui,
colando ali,
até que uma fonte rasgue a tua boca
e a noite fique transbordante de água.


Eugénio de Andrade


Minha culpa

A Artur Ledesma


Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem
Quem sou?! Um fogo-fátuo, uma miragem...
Sou um reflexo... um canto de paisagem
Ou apenas cenário! Um vaivém...


Como a sorte: hoje aqui, depois além!
Sei lá quem Sou?! Sei lá! Sou a roupagem
Dum doido que partiu numa romagem
E nunca mais voltou! Eu sei lá quem!...


Sou um verme que um dia quis ser astro...
Uma estátua truncada de alabastro...
Uma chaga sangrenta do Senhor...


Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados,
Num mundo de vaidades e pecados,
Sou mais um mau, sou mais um pecador...


Florbela Espanca





Blasfémia


Silêncio, meu Amor, não digas nada!
Cai a noite nos longes donde vim…
Toda eu sou alma e amor, sou um jardim,
Um pátio alucinante de Granada!

Dos meus cílios a sombra enluarada,
Quando os teus olhos descem sobre mim,
Traça trémulas hastes de jasmim
Na palidez da face extasiada!

Sou no teu rosto a luz que o alumia,
Sou a expressão das tuas mãos de raça,
E os beijos que me dás já foram meus!

Em ti sou Glória, Altura e Poesia!
E vejo-me - milagre cheio de graça! …
Dentro de ti, em ti igual a Deus!…


Florbela Espanca






Aprender a estudar


Estudar é muito importante,
mas pode-se estudar de várias maneiras....
Muitas vezes estudar não é só aprender
o que vem nos livros.

Estudar não é só ler nos livros
que há nas escolas.
E também aprender a ser livre,
sem ideias tolas.
Ler um livro é muito importante,
ás vezes urgente.
Mas os livros não são o bastante
para a gente ser gente.
É preciso aprender a escrever,
mas também a viver, mas também a sonhar.
É preciso aprender a crescer,
aprender a estudar.

Aprender a crescer quer dizer:
aprender a estudar, a conhecer os outros,
a ajudar os outros,
a viver com os outros.
E quem aprende a viver com os outros
aprende sempre a viver bem consigo próprio.
Não merecer um castigo é estudar.
Estar contente consigo é estudar.
Aprender a terra, aprender o trigo
e ter um amigo também é estudar.

Estudar também é repartir,
também é saber dar
o que a gente souber dividir
para multiplicar.
Estudar é escrever um ditado
sem ninguém nos ditar;
e se um erro nos fôr apontado
é sabê-lo emendar.
É preciso em vez de um tinteiro,
ter uma cabeça que saiba pensar,
pois, na escola da vida, primeiro está saber estudar.

Cantar todas as papoilas de um trigal
é a mais linda conta que se pode fazer.
Dizer apenas música,
quando se ouve um pássaro,
pode ser a mais bela redacção do mundo...
mas pensar é tudo!


José Carlos Ary dos Santos


De olhos abertos



De olhos abertos,
fixos e incertos,
paro a pensar
que não te vejo
que és só desejo
de te inventar.

E é sempre assim!
Em tudo ponho
este fechar
do mundo em mim.

(Só do porão
do meu navio
de tempestade
consigo ver
melhor o mar.)

Mas há lá sonho
que se compare
a este arrepio,
a este querer
fixar em vão
a realidade!
(sem a encontrar)

José Gomes Ferreira

Comunicado


Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.

Miguel Torga


Tempestade


Faz mar na ria
Formaram-se ondas
Que ventania
Torna redondas.
Correm na ria
Ondas aos centos.
Cavalaria
De água e ventos


Pedro Homem de Melo


7.28.2007


Esperança


aa.jpg (upload by Uplofile)

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

Mário Quintana (poeta brasileiro)

7.25.2007

animation1.gif (upload by Uplofile)


Em tuas mãos obreiras nascem flores.
Em teu sexo germinam alvoradas,
manhãs de outono sem clarões de espadas
riso, perfumes, cores.

Daniel Filipe (poeta caboverdiano)


Adeus


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade





7.24.2007


Canção


Hoje venho dizer-te que nevou
no rosto familiar que te esperava.
Não é nada, meu amor, foi um pássaro,
a casca do tempo que caiu,
uma lágrima, um barco, uma palavra.

Foi apenas mais um dia que passou
entre arcos e arcos de solidão;
a curva dos teus olhos que se fechou,
uma gota de orvalho, uma só gota,
secretamente morta na tua mão.

Eugénio de Andrade

7.23.2007

Desnecessária Explicação

image1.jpg (upload by Uplofile)


Que importa a melodia,
se acaso aos outros dou,
com pávida alegria,
o pouco que me sou?

Que importa ao que me sabe
estar só no meu caminho,
se dentro de mim cabe
a glória de ir sozinho?

Que importa a vã ternura
das horas magoadas,
se ao meu redor perdura
o eco das passadas?

Que importa a solidão
e o não saber onde ir,
se tudo, ao coração,
nos fala de partir?

Daniel Filipe (poeta caboverdiano)

A morte chega cedo


A morte chega cedo,
Pois breve é toda vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.

O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.

E tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.


Fernando Pessoa

7.22.2007


Frieza


Os teus olhos são frios como as espadas,
E claros como os trágicos punhais,
Têm brilhos cortantes de metais
E fulgores de lâminas geladas.


Vejo neles imagens retratadas
De abandonos cruéis e desleais,
Fantásticos desejos irreais,
E todo o oiro e o sol das madrugadas!


Mas não te invejo, Amor, essa indif'rença,
Que viver neste mundo sem amar
É pior que ser cego de nascença!


Tu invejas a dor que vive em mim!
E quanta vez dirás a soluçar:
"Ah, quem me dera, Irmã, amar assim!...


Florbela Espanca






Toda a noite acompanhei a tua viagem, Orfeu,
de fogo em fogo,
de melodia em melodia,
até o centro da Construção das Trevas.

Ah! E com que volúpia te vi de novo estrangular
a tua Eurídice
calada para sempre,
morta para sempre
- melodia
que só oculta no silêncio
atravessa as pedras...

E agora, Orfeu,
raiz do avesso,
vejo-te regressar lentamente à superfície da Terra,
com as mãos desfeitas em flor de orvalho
no fogo consumido.

Amanhece.
O planeta é de vidro.



José Gomes Ferreira



Voz activa


Canta, poeta, canta!
Violenta o silêncio conformado.
Cega com outra luz a luz do dia.
Desassossega o mundo sossegado.
Ensina a cada alma a sua rebeldia.

Miguel Torga


O Relógio



Relógio, meu amigo, és a Vida em Segundos…
Consulto-te: um segundo! E quem sabe se agora,
Como eu próprio, a pensar, pensará doutros mundos
Alma que filosofa e investiga e labora?

Há de a morte ceifar somas de moribundos.
O relógio trabalha… E um sorri e outro chora,
Nas cavernas, no mar ou nos antros profundos
Ou no abismo que assombra e que assusta e apavora…

Relógio, meu amigo, és o meu companheiro,
Que aos vencidos, aos réus, aos párias e ao morfético
Tem posturas de algoz e gestos de coveiro…

Relógio, meu amigo, as blasfêmias e a prece,
Tudo encerra o segundo, insólito - sintético:
A volúpia do beijo e a mágoa que enlouquece!


Jorge de Lima (poeta brasileiro)

Maria: Lisboa


É varina, usa chinela,
tem movimentos de gata;
na canastra, a caravela,
no coração, a fragata.

Em vez de corvos no chaile,
gaivotas vêm pousar.
Quando o vento a leva ao baile,
baila no baile com o mar.

É de conchas o vestido,
tem algas na cabeleira,
e nas velas o latido
do motor duma traineira.

Vende sonho e maresia,
tempestades apregoa.
Seu nome próprio: Maria;
seu apelido: Lisboa.


David Mourão Ferreira


7.21.2007


Dos Milagres


O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!


Mário Quintana (poeta brasileiro)


7.18.2007


Prospecção


Não são pepitas de oiro que procuro.
Oiro dentro de mim, terra singela!
Busco apenas aquela
Universal riqueza
Do homem que revolve a solidão:
O tesoiro sagrado
De nenhuma certeza,
Soterrado
Por mil certezas de aluvião.
Cavo,
Lavo,
Peneiro,
Mas só quero a fortuna
De me encontrar.
Poeta antes dos versos
E sede antes da fonte.
Puro como um deserto.
Inteiramente nu e descoberto.


Miguel Torga


Cristo Redentor do Corcovado


O avô de minha avó
Morreu também corcovado
Carregando um cristo de maçaranduba
Que protegia os passos vagarosos da família.

Arranjei velocidade.
Virei homem de cimento armado.

Adoro esse Cristo turista
De braços abertos
Que procura equilíbrio
Na montanha brasileira.

Os homens de fé têm esperança n' Ele,
Porque Ele é ligeiro, porque Ele é ubíquo,
Porque Ele é imutável.

Ele acompanha o homem de cimento armado
Através de todas as substancias,
Através de todas as perspectivas,
Através de todas as distancias

Jorge de Lima (poeta brasileiro)

7.17.2007


Porquinho-da-Índia


Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele prá sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas . . .


— O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.


Manuel Bandeira (poeta brasileiro)

7.16.2007


Toada de Portalegre



Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Morei numa casa velha,

Velha, grande, tosca e bela,

À qual quis como se fora

Feita para eu morar nela...

Cheia dos maus e bons cheiros

Das casas que têm história,

Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória

De antigas gentes e traças,

Cheia de sol nas vidraças

E de escuro nos recantos,

Cheia de medo e sossego,

De silêncios e de espantos,

- Quis-lhe bem, como se fora

Tão feita ao gosto de outrora

Como ao do meu aconchego.

Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De montes e de oliveiras,

Do vento soão queimada,

(Lá vem o vento soão!,

Que enche o sono de pavores,

Faz febre, esfarela os ossos,

Dói nos peitos sufocados,

E atira aos desesperados

A corda com que se enforcam

Na trave de algum desvão...)

Em Portalegre, dizia,

Cidade onde então sofria

Coisas que terei pudor

De contar seja a quem for,

Na tal casa tosca e bela

À qual quis como se fora

Feita para eu morar nela,

Tinha, então,

Por única diversão,

Uma pequena varanda

Diante duma janela.

Toda aberta ao sol que abrasa,

Ao frio que tolhe, gela,

E ao vento que anda, desanda,

E sarabanda, e ciranda

De redor da minha casa,

Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Era uma bela varanda,

Naquela bela janela!

Serras deitadas nas nuvens,

Vagas e azuis da distância,

Azuis, cinzentas, lilazes,

Já roxas quando mais perto,

Campos verdes e amarelos,

Salpicados de oliveiras,

E que o frio, ao vir, despia,

Rasava, unia

Num mesmo ar de deserto

Ou de longínquas geleiras,

Céus que lá em cima, estrelados,

Boiando em lua, ou fechados

Nos seus turbilhões de trevas,

Pareciam engolir-me

Quando, fitando-os suspenso

De aquele silêncio imenso,

Eu sentia o chão fugir-me,

- Se abriam diante dela,

Daquela

Bela

Varanda

Daquela

Minha

Janela,

Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Na casa em que morei, velha,

Cheia dos maus e bons cheiros

Das casas que têm história,

Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória

De antigas gentes e traças,

Cheia de sol nas vidraças

E de escuro nos recantos,

Cheia de medo e sossego,

De silêncios e de espantos,

À qual quis como se fora

Tão feita ao gosto de outrora

Como ao do meu aconchego...

Ora agora,

Que havia o vento soão

Que enche o sono de pavores,

Faz febre, esfarela os ossos,

Dói nos peitos sufocados,

E atira aos desesperados

A corda com que se enforcam

Na trave de algum desvão,

Que havia o vento soão

De se lembrar de fazer?

Em Portalegre, dizia,

Cidade onde então sofria

Coisas que terei pudor

De contar seja a quem for,

Que havia o vento soão

De fazer,

Senão trazer

Àquela

Minha

Varanda

Daquela

Minha

Janela

O testemunho maior

De que Deus

é protector

Dos seus

Que mais faz sofrer?

Lá num craveiro que eu tinha,

Onde uma cepa cansada

Mal dava cravos sem vida,

Poisou qualquer sementinha

Que o vento que anda, desanda,

E sarabanda, e ciranda,

Achara no ar perdida,

Errando entre terra e céus...,

E, louvado seja Deus!,

Eis que uma folha miudinha

Rompeu, cresceu, recortada,

Furando a cepa cansada

Que dava cravos sem vida

Naquela

Bela

Varanda

Daquela

Minha

Janela

Da tal casa tosca e bela

À qual quis como se fora

Feita para eu morar nela...

Como é que o vento soão

Que enche o sono de pavores,

Faz febre, esfarela os ossos,

Dói nos peitos sufocados,

E atira aos desesperados

A corda com que se enforcam

Na trave de algum desvão,

Me trouxe a mim que, dizia,

Em Portalegre sofria

Coisas que terei pudor

De contar seja a quem for,

Me trouxe a mim essa esmola,

Esse pedido de paz

Dum Deus que fere... e consola

Com o próprio mal que faz?

Coisas que terei pudor

De contar seja a quem for

Me davam então tal vida

Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Me davam então tal vida

- Não vivida!, mas morrida

No tédio e no desespero,

No espanto e na solidão -

Que a corda dos derradeiros

Desejos dos desgraçados

Por noites do vento soão

Já várias vezes tentara

Meus dedos verdes suados...

Senão quando o amor de Deus

Ao vento que anda, desanda,

E sarabanda, e ciranda,

Confia uma sementinha

Perdida entre a terra e céus,

E o vento a traz à varanda

Daquela

Minha

Janela

Da tal casa tosca e bela

À qual quis como se fora

Feita para eu morar nela!

Lá no craveiro que eu tinha,

Onde uma cepa cansada

Mal dava cravos sem vida,

Nasceu essa acàciazinha

Que depois foi transplantada

E cresceu, dom do meu Deus!,

Aos pés lá da estranha casa

Do largo do cemitério,

Frente aos ciprestes que em frente

Mostram os céus,

Como dedos apontados

De gigantes enterrados...

Quem desespera dos homens,

Se a alma lhe não secou,

A tudo transfere a esprança

Que a humanidade frustrou:

E é capaz de amar as plantas,

De esperar nos animais,

De humanizar coisas brutas,

E ter criancices tais,

Tais e tantas!,

Que será bom ter pudor

De as contar seja a quem for.

O amor, a amizade, e quantos

Sonhos de cristal sonhara,

Bens deste mundo, que o mundo

Me levara,

De tal maneira me tinham,

Ao fugir-me,

Deixado só, nulo, atónito,

A mim, que tanto esperara

Ser fiel,

E forte,

E firme,

Que não era mais que morte

A vida que então vivia,

Auto-cadáver...

E era então que sucedia

Que em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Aos pés lá da casa velha

Cheia dos maus e bons cheiros

Das casas que têm história,

Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória

De antigas gentes e traças,

Cheia de sol nas vidraças

E de escuro nos recantos,

Cheia de medo e sossego,

De silêncios e de espantos,

- A minha acácia crescia.

Vento soão!, obrigado

Pela doce companhia

Que em teu hálito empestado,

Sem eu sonhar, me chegava!

E a cada raminho novo

Que a tenra acácia deitava,

Será loucura!..., mas era

Uma alegria

Na longa e negra apatia

Daquela miséria extrema

Em que eu vivia,

E vivera,

Como se fizera um poema,

Ou se um filho me nascera.



José Régio