3.31.2008


Uma negra convertida


Minha avó negra, de panos escuros,
da cor do carvão...
Minha avó negra de panos escuros
que nunca mais deixou...

Andas de luto,
toda és tristeza...
Heroína de ideias,
rompeste com a velha tradição
dos cazumbis, dos quimbandas...

Não xinguilas, no obito.
Tuas mãos de dedos encarquilhados,
tuas mãos calosas da enxada,
tuas mãos que preparam mimos da Nossa Terra,
quitabas e quifufutilas - ,
tuas mãos, ora tranquilas,
desfilam as contas gastas de um rosário já velho...

Teus olhos perderam o brilho;
e da tua mocidade
só te ficou a saudade
e um colar de missangas...

Avózinha,
as vezes, ouço vozes que te segredam
saudades da tua velha sanzala,
da cubata onde nasceste,
das algazarras dos óbitos,
das tentadoras mentiras do quimbanda,
dos sonhos de alambamento
que supunhas merecer...
E penso que... se pudesses,
talvez revivesses
as velhas tradições!

Mário António (poeta angolano)



Quando surges na noite...


Quando surges na noite, quando avanças
porque o som do batuque por ti chama,
teu corpo negro é chama que me inflama,
quando surges na noite, quando danças...

Quando danças, cantando as esperanças
e os desesperos todos de quem ama,
teu corpo negro é fogo que derrama
febre nas almas que repousam mansas.

Tu vens dançando (tudo em mim se agita)
e vens cantando (tudo em mim já grita),
quando surges em noite de queimada...

Depois, somos os dois, no mesmo abraço,
num batuque só nosso, num compasso
mais febril do que toda a batucada!

Geraldo Bessa Vítor (poeta angolano)


Paisagem nocturna


A sombra imensa, a noite infinita enche o vale . . .
E lá do fundo vem a voz
Humilde e lamentosa
Dos pássaros da treva. Em nós,
— Em noss'alma criminosa,
O pavor se insinua . . .
Um carneiro bale.
Ouvem-se pios funerais.
Um como grande e doloroso arquejo
Corta a amplidão que a amplidão continua . . .
E cadentes, metálicos, pontuais,
Os tanoeiros do brejo,
— Os vigias da noite silenciosa,
Malham nos aguaçais.

Pouco a pouco, porém, a muralha de treva
Vai perdendo a espessura, e em breve se adelgaça
Como um diáfano crepe, atrás do qual se eleva
A sombria massa
Das serranias.

O plenilúnio vai romper . . . Já da penumbra
Lentamente reslumbra
A paisagem de grandes árvores dormentes.
E cambiantes sutis, tonalidades fugidias,
Tintas deliqüescentes
Mancham para o levante as nuvens langorosas.

Enfim, cheia, serena, pura,
Como uma hóstia de luz erguida no horizonte,
Fazendo levantar a fronte
Dos poetas e das almas amorosas,
Dissipando o temor nas consciências medrosas
E frustrando a emboscada a espiar na noite escura,
— A Lua
Assoma à crista da montanha.
Em sua luz se banha
A solidão cheia de vozes que segredam . . .

Em voluptuoso espreguiçar de forma nua
As névoas enveredam
No vale. São como alvas, longas charpas
Suspensas no ar ao longe das escarpas.
Lembram os rebanhos de carneiros
Quando,
Fugindo ao sol a pino,
Buscam oitões, adros hospitaleiros
E lá quedam tranquilos ruminando . . .
Assim a névoa azul paira sonhando . . .
As estrelas sorriem de escutar
As baladas atrozes
Dos sapos.

E o luar húmido . . . fino . . .
Amávico . . . tutelar . . .
Anima e transfigura a solidão cheia de vozes . . .


Manuel Bandeira (poeta brasileiro)



Silêncio


Silêncio aberto
de plenitude
como uma ilha
num lago fundo

Silêncio exacto
cheio de música
vindo de nada
contendo tudo.

É este agora
deste momento
em que estando
me ausento.


Glória de Sant'Anna


Atributos Divinos


O pudor é um atributo divino
O impudor selvagem também
E o riso aberto e o choro alto
E a lágrima recolhida nas mãos solitárias da noite
E o sorrir para si próprio que ninguém mais entende

Tudo isso são atributos divinos
São as estações do ano
Próprias do amor


Alberto de Lacerda

Infinitas fiadeiras


A aranha ateia
diz ao aranho na teia:
o nosso amor
está por um fio!


Mia Couto
Moçambique

Poema


Esta última lágrima
era de oiro

Aqui estou
como uma pétala solta

O vento me levará
ao último azul

E serei horizonte

Glória de Sant’Anna


Quase um poema de amor


Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.
Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
- Há muito tempo que já não escrevo um poema
De amor.


Miguel Torga



Melancolia


Oh doce luz, oh lua!
Que luz suave a tua,
E como se insinua
Em alma que flutua
De engano em desengano!
Oh criação sublime!
A tua luz reprime
As tentações do crime,
E à dor que nos oprime
Abres-lhe um oceano!

É esse céu um lago,
E tu, reflexo vago
De um sol, como o que eu trago
No seio onde o afago,
No seio onde o aperto?
Oh luz órfã do dia!
Que mística harmonia
Há nessa luz tão fria,
E a sombra que me guia
Neste areal deserto?

Embora as nuvens trajem
De dia outra roupagem,
O sol, de que és imagem,
Não tem essa linguagem
Que encanta, que namora!
Fita-te a gente, estuda,
Sem medo que se iluda,
Essa linguagem muda...
O teu olhar ajuda...
E a gente sente e chora!

Ah! sempre que descrevas
A orbita que levas,
Confia-me o que escrevas
De quanto vês nas trevas,
Que a luz do sol encobre...
As vítimas, que escutas,
De traças mais astutas
Que as dessas feras brutas...
E as lástimas, as lutas
Da órfã e do pobre!


João de Deus

3.30.2008


Ondas


Onde - ondas - mais belos cavalos
Do que estas ondas que vós sois
Onde mais bela curva do pescoço
Onde mais longas crinas sacudidas
Ou impetuoso arfar no mar intenso
Onde tão ébrio amor em vasta praia


Sophia de Mello Breyner Andersen


Em louvor das gaivotas


Enquanto leio sonolento um romance
de Camilo, um vento
desabrido e alegre varre as dunas.
Leva consigo toldos, roupas, crianças.
Quando mais tarde a luz,
esta tão leve luz meridional
regressa, já as gaivotas
são senhoras das areias
e, minuciosas, de maneira exemplar,
destroem tudo quanto é ainda
a mal cheirosa memória humana,
numa espécie de paixão -
digo-vos


Eugénio de Andrade

Crisântemos


Sombrios mensageiros das violetas,
De longas e revoltas cabeleiras;
Brancos, sois o casto olhar das virgens
Pálidas que ao luar, sonham nas eiras.

Vermelhos, gargalhadas triunfantes,
Lábios quentes de sonhos e desejos,
Carícias sensuais d´amor e gozo;
Crisântemos de sangue, vós sois beijos!

Os amarelos riem amarguras,
Os roxos dizem prantos e torturas,
Há-os também cor de fogo, sensuais...

Eu amo os crisântemos misteriosos
Por serem lindos, tristes e mimosos,
Por ser a flor de que tu gostas mais!


Florbela Espanca




Do meu amor perfeito, flor ausente,
não lembro o rosto nem a voz:

lembro a fadiga sorridente
que havia, ao fim, em cada um de nós.



David Mourão-Ferreira



Este foi o nosso último abraço. E quando,
daqui a nada, deixares o chão desta casa
encostarei amorosamente os lábios ao teu copo
para sentir o sabor desse beijo que hoje não
daremos. E então, sim, poderei também eu
partir, sabendo que, afinal, o que tive da vida
foi mais, muito mais, do que mereci.

Maria do Rosário Pedreira




Em louvor do fogo


Um dia chega
de uma extrema doçura:
tudo arde.

Arde a luz
nos vidros da ternura.

As aves,
no branco
labirinto da cal.

As palavras ardem
e a púrpura das naves.

O vento,

onde tenho casa
à beira do outono.

O limoeiro, as colinas.

Tudo arde

Na extrema e lenta
doçura da tarde.

Eugénio de Andrade



Aldeia Queimada


Mas
nas noites
desparasitadas de estrelas
é que as hienas
actuam.

É
de cinzas
o vestígio das palhotas.

José Craveirinha

Aniversário


1


Salva-me agora, não desta morte ou de outra
mas de ir vivendo assim seguramente
sem música nem arte, e com o amigo ausente.
No escuro ainda levantei-me e vi
a antiga madrugada que nascia
leve e primeira com a luz macia.
E quem me ouvia, se não os mortos mansos
e generosos sob a lousa fria?
É certo que sonhei que me deixavas
amar e ser amado, como quem
sem mérito nem rosto me fizeste;
mas era de cantor que me mandavas
às portas da cidade ver arder o dia.


2


Vais ser um sério homem, ou mulher, conforme o estigma.
Doutor, filósofo decerto em hora incerta, e artista
quando a espuma é mais ríspida nas coxas
e mais fria a lâmina sombria. E um dia,
tendo esquecido já a cor da minha pele
inteiramente em cinzas, e a figura de corpo que fazia,
uma palavra vaga ou mero eco
te lembrará um não sei quê, um quase,
inverosímil coisa que ficou
dentro de ti, nesse buraco aberto.
Tinha, talvez, o universo, um outro
mais arcaico lugar de onde se via
o naufrágio dos astros, e no centro
brilhava, de invulgar, um surdo objecto
pouco real para o teu gosto.
Já de férias nas ilhas, contudo, o mar se mostra
seco em demasia. Conchas vazias cortam
a lisa superfície. És tão feliz, de olho fechado, absorto
em quinze dias de áfrica perfeita! e os filhos soltam
gritos azuis, à dura luz das ondas;
peixes cintilam, à tua boca afeitos;
e crescem pontes, autoestradas, néon
em sinuosas curvas ascendentes.
Aí ficou, por dias, o cadáver. Quanto demora
a mensagem final do presidente! e folhos, ramos,
coroas tricolores, tudo me afasta
numa caixa de pinho envernizado.
Não verás nunca as lágrimas, o riso.
Saberás que te escrevo de além-terra
ou de um sítio divino sobre as nuvens;
era no tempo em que os animais falavam
mas não era verdade o que diziam.
Sou tão mais belo assim, de corpo em fogo;
está tão iluminado, o tal Cocito;
que já me espanta não ter antes pensado
em retirar-me aqui a vida inteira.
E é bem interessante, este detalhe
ornamental... conjectural, contudo...
guardavam as alfaias e as armas, viste?,
na mesma prateleira; e os cristais.
Quando se diz uma maçã, ou uma bola de trapos,
também se poderia dizer, uma cabeça de criança,
em certas circunstâncias.
Não tem limites a crueldade humana.
Também o acaso não ajuda, as cansativas
expedições à muralha perpétua,
a coluna dórica, e mesmo esse rio renascentista
continuamente habitado por jovens corpos nus.
O seu nome era


3


Gosto de ti como se gosta do sol, e era bom
ficar ao sol todo o dia, mas queima.
Muitos outros se deitam ao sol, toda a espécie de corpos,
não tens tamanho para tanta gente.
Um dia vai-se abrir a porta doirada,
vamos caber, um a um.
Vais-me escolher especialmente, como todos os outros.
Podes ter mãos. Podias até, alguma vez, ter lábios,
dizer alguma coisa em língua, numa língua qualquer.
Naturalmente, a imaginação poética é só devaneio,
tilintar de talheres sem nada para comer,
um ar tão leve, para que serve respirar?
Para esquecer, escrevo um longo romance verdadeiro
e pícaro; tudo nele é real!, as pessoas dormem
e acordam e dormem, e fodem nos intervalos;
devoram-se animais; mas o melhor são os diálogos.
Entre existires e não existires antes não existires,
é mais inteiro, deixa menos dúvidas dentro do crânio,
ao lado dos ossos normais. Entre mulher e homem
o melhor é não teres mesmo por onde escolher,
vestir saia-casaco ou fato completo,
usar até, em dias de festa, as tuas peles virtuais.



António Franco Alexandre

3.29.2008


Vulcões


Tudo é frio e gelado. O gume dum punhal
Não tem a lividez sinistra da montanha
Quando a noite a inunda dum manto sem igual
De neve branca e fria onde o luar se banha.

No entanto que fogo, que lavas, a montanha
Oculta no seu seio de lividez fatal!
Tudo é quente lá dentro...e que paixão tamanha
A fria neve envolve em seu vestido ideal!

No gelo da indiferença ocultam-se as paixões
Como no gelo frio do cume da montanha
Se oculta a lava quente do seio dos vulcões...

Assim quando eu te falo alegre, friamente,
Sem um tremor de voz, mal sabes tu que estranha
Paixão palpita e ruge em mim doida e fremente!


Florbela Espanca


3.28.2008


Pórtico


Aqui começa a nova caminhada.
Se a levar ao fim, darei louvores a Deus,
Como meu Pai, ao despegar
Do dia ganho.
Não por haver chegado,
Mas ter acrescentado
Um palmo de ilusão ao meu tamanho.

Miguel Torga



Para um idílio clandestino


Deixa-me que te beije
ao de leve o rosto na manhã nova
e meus dedos acariciem
nervosos a curva meiga do teu seio.

Meu amor:
o senso fragmenta-me a sensibilidade
e o que seu sinto-o
larva plena do que há-de vir.

Tu e eu
envolvidos nesta aventura
esperamos o comprometido instante
nalguma parte de nós.

Vai. Não te esqueças.
Nesta manhã do Infulene
ao quilómetro dez da liberdade
o sobrenatural acontece:
É assim.
Eu preso.
E tu minha mulher
depois da visita partes à vontade
mas não livre.


José Craveirinha



Nossa irmã lua


Uma irmãzinha meiga que nos cubra
a todos com a quentura terna e gostosa
do seu carinho...
que entorne toda a sua claridade
sobre as nossas tristes cabeças vergadas
e, como um feitiço forte e misterioso,
nos afugente as raivas fundas e dolorosas
de revoltados,
com a sua morna carícia de veludo...
sua enorme mão,
luminosamente branca, consegue-nos tudo.
E sob o seu feitiço potente, serenamos.
E pouco a pouco, momento a momento,
Sossegando vamos...
Fechando nossos olhos pacientes de esperar,
Já podemos vogar no mar
Parado dos nossos sonhos cansados...
E até podemos cantar!
Até podemos cantar o nosso lamento...
De olhos para dentro, para dentro de nós,
Sentimo-nos novamente humanos,
Somos nós novamente,
E não brutos e cegos animais aguilhoados...
Sim. Nós cantamos amorosamente
A lua amiga que é nossa irmã.
– Embora nos repitam que não,
nós o sentimos fundo no coração...
(que bem vemos
que no seu largo rosto de leite há sorrisos brandos de doçura
para nós, seus irmãos...)
só não compreendemos
como é que, sendo tão branca a nossa irmã,
nos possa ser tão completamente crista,
se nós somos tão negros, tão negros,
como a noite mais solitária e mais desoladamente escura...


Noémia de Sousa



Dedicatória


Aos poetas que pensam e dizem versos
mas não os sabem escrever
e por isso anónimos lhes chamam.
Nas rochas corroídas pelo sal de outros mares
navegados para implantar espada cruz e poder
nas rochas onde o luar desnuda o silêncio
pulsando canções da noite assim povoada
e que o sol inflama e semeia
sobre as efémeras gostas de cacimba
renovadas com cintilações das estrelas,
aí eu gravarei seus nomes.
E os amantes pressentindo
os hão-de perguntar e saudar.

Orlando Mendes


Lua Nova



“Quenguêlêquêze!... “Quenguêlêquêze!... (Lua Nova)

Surgia a lua nova,
E a grande nova]
— Quenguêlêquêze!...— ia de boca em boca
Traçando os rostos de expressões estranhas,
Atravessando o bosque, aldeias e montanhas,
Numa alegria enorme, uma alegria louca,

Loucamente,
Perturbadoramente...

Danças fantásticas
Punham nos corpos vibrações elásticas,
Febris,
Ondeando ventres, troncos nus, quadris...

E ao som de palmas
Os homens, cabriolando,
Iam cantando
Medos de estranhas vingativas almas,
Guerras antigas
Com destemidas impias inimigas
— obscenidades claras, descaradas,
Que as mulheres ouviam com risadas
Ateando mais e mais
O rítmico calor das danças sensuais.

“Quenguêlêquêze!... Quenguêlêquêze!...”

Uma mulher de vez em quando vinha,
Coleava a espinha,
Gingava as ancas voluptuosamente,
E diante do homem, frente a frente,
Punham-se os dois a simular segredos...
— Nos arvoredos
Ia um murmúrio eólico
Que dava à cena, à luz da lua, um que diabólico...
“Quêze!.Quenguêlêquêze!...”

... Entanto uma mulher saíra sorrateira
Com outra mais velhinha;
Dirigiu-se na sombra à montureira,
Com uma criancinha.
Fazia escuro e havia
Ali um cheiro estranho
A cinzas ensopadas,
Sobras de peixe e fezes de rebanho
Misturadas...O vento, perpassando a cerca de caniço,
Trazia para fora o ar abafadiço,
Um ar de podridão...
E as mulheres entravam com um tição:
E enquanto a mais idosa
Pegava na criança e a mostrava à lua
Dizendo-lhe: “Olha, é a lua”,
A outra, erguendo a mão,
Lançou direito à lua a acha luminosa.
— O estrepitar de palmas foi morrendo...
E a lua foi crescendo... foi crescendo...
Lentamente...
Como se fora em brando e afogado leito
Deitaram a criança, revolando-a,
Ali na imunda podridão, no escuro,
Lhe deu o peito...

Então, o pai chegou,
Cercou-a de desvelos,
De manso a conduziu p´los cotovelos,
Tomou-a nos seus braços e cantou
Esta canção ardente:

“Meu filho, eu estou contente!
Agora já na temo que ninguém
Mofe de ti na rua,
E diga, quando errares, que tua mãe
Te não mostrou a lua!

Agora tens abertos os ouvidos
Para tudo compreender;
Teu peito afoitará, impávido, os rugidos
Das feras, sem tremer...
Meu filho, estou contente!
Tu és agora um ser inteligente,
E assim hás-de crescer, hás-de ser homem forte

Até que já cansado
Um dia muito velho
De filhos, rodeado,
Sentido já dobrar–se o teu joelho
Virá buscar-te a Morte...
Meu filho, eu estou contente!
Agora, sim, sou pai!...”

Na aldeia, lentamente,
O estrepitar das palmas foi morrendo...
E a lua foi crescendo...
— Crescendo
Como um ai...


Rui de Noronha
Moçambique

Princípio do dia


Rompe-me o sono um latir de cães
na madrugada. Acordo na antemanhã
de gritos desconexos e sacudo
de mim os restos da noite
e a cinza dos cigarros fumados
na véspera.
Digo adeus à noite sem saudade,
digo bom-dia ao novo dia.
Na mesa o retrato ganha contorno,
digo-lhe bom-dia
e sei que intimamente ele responde.

Saio para a rua
e vou dizendo bom-dia em surdina
às coisas e pessoas por que passo.

No escritório digo bom-dia.
Dizem-me bom-dia como quem fecha
uma janela sobre o nevoeiro,
palavras ditas com a epiderme,
som dissonante, opaco, pesado muro
entre o sentir e o falar.

E bom dia já não é mais a ponte
que eu experimentei levantar.
Calado,
sento-me à secretária, soturno, desencantado.


(Amanhã volto a experimentar).


Rui Knopfli


Nampiali


Verde carmim azul e violeta
e nós
marchando no planalto

Em baixo
o vale
e as machambas de Nachinhooo

Mais longe
nas encostas do Nampiali

as árvores
verde carmim azul e violeta
enchem os nossos olhos

É já o pôr do sol

Vamos marchando
e as vozes vão cantando

«somos soldados da FRELIMOOO…»

Verde carmim azul e violeta
e nós
marchando no planalto
Luindo sempre para além

verde carmim azul e violeta

Aqui os portugueses foram

Aqui os portugueses não voltarão

Agora nascem os campos de produção

«Deciiididos
Nós lutaremos…»

Nós
marchando no planalto
seguindo para além

e sempre nos nossos olhos
as cores suaves e doces
de verde carmim azul e violeta
na paisagem quente
da terra livre de Moçambique


Marcelino dos Santos
Moçambique

Paisagem com poema em segundo plano


I

«Tantos nomes que não há
para dizer o silêncio».
Através das palavras, as que sobraram
dos outros e se encurvam à luz
edificámos a casa, flores alucinantes
e a canganhiça do fogo eterno
que há no amor.
Com esta não invoco um nome
e o meu país, acocorado, volta-se de perfil
com suas mulheres magras e sombrias e trágicas
pegando fogo aos sexos extenuados
As quizumbas deixam de ladrar
quando o medo cessa e da paisagem em movimento
(os rios inúteis? o crepúsculo das vontades?
os cascos do remorso? as crianças sublevadas?)
nomeia-se, se embebe tipograficamente
a humildade dos vultos em fila
ante o impossível milagre dos pães.
Como no circo
há quem não bata palmas.
«Tantos nomes que não há
para dizer o silêncio»
mas lembro, soletro devagar:
nocturno e geralmente inacessível
um homem percorre todos os lugares
e volta-se escuramente
para dentro de si
- que é a única prisão disponível
para o tamanho da sua luz.
As estrelas baixam ao nível do chão
e guardam-no para a eternidade
que há em cada sono.



II

Tudo veio de muito longe
(murmuram-no as mulheres expostas
acariciando o púbis chamuscado)
para todo este território
onde as formas rápidas e convulsas
explicam as cabeças submergidas
na vertigem fabulosa
das parábolas.
Da infância à adolescência
os meninos souberam-no pelo Índico
na concha cheia de suas mãos puras e arrebatadas:
a dimensão do real é sempre discutível
como o adivinharam há muito
as aves canoras inundando
a inteligência da terra.
Fluo e refluo no tempo e na sua sombra
e dissimulo-me no capim, nos corais, no jardim urbano,
nas orelhas apreensivas, na crispação de alguns cristais
e sobretudo nos músculos das palavras ausentes
a crescer no formidável espaço do poema
- o amor inundará tudo
até ao sabugo das unhas.
Das letras, em algumas noites,
são esses os sinais que recebemos.



III

É isso: morre-se ou vive-se na ambiguidade
mas o amor empolga como nunca
antes em qualquer nervo desta galáxia.
Então pensamos:
por cima de toda a folha
há a luz, este surpreendimento
a suor de animais insaciados que se veste de nós
e de nós se assombra (ou inquieta, subverte?)
a urbana convivência
tecida em silogismos
e recamada de ódios.
As coisas, ah as outras coisas
surgem pela própria ausência.
E assim
há gente que ama a fome
pois sempre aprendeu dos novos fabulários:
a burla nasce quando a dúvida
acontece o simples e delicado povoado
onde o coração emite
as seculares ondas de repulsas.
As palavras amadurecem, transcendem-nos.
Como os dias. Este trajecto imemorial.
Os vãos escuros das escadas. Os estádios ao sol.
As vazias mesas. Uma criança estremunhada na noite.
O império dos sentidos. Uma braçada de folhas de mandioca.
Das mulheres feridas, a teimosia. Na pele, os mil olhos.
E insuspeita, delicadamente
a sombra reflexiva
(há séculos? desde ontem?)
de um escriba na audição
do poema que não fará.
Porque, hoje como nunca,
«tantos nomes que não há
para dizer o silêncio».


Heliodoro Baptista
Moçambique

Desligado


Era bom se
amanhecesse
neste sossego
presente
sem pensar
no futuro
nem mesmo
no castigo
que o livro
evoca
era bom
se obedecesse
minha alma
sem ter que
obedecer
as estrelas
as árvores
e as raízes
era bom se
meu coração
cantasse
a canção
de liberdade
sem ter que recorrer
aos ancestrais,
ancestrais
escondidos
no embondeiro
ou talvez
neste ar impuro...
era bom
que olhasses
p’ra mim
como humano
não escolhido
mas também
humano de bem
como o infinito!


Domi Chirongo


Se me perguntares


Se me perguntares
Quem sou eu
Cavada de bexiga de maldade
Com um sorriso sinistro
Nada te direi
Nada te direi
Mostrarte-ei as cicatrizes de séculos
Que sulcam as minhas costas negras
Olhar-te-ei com olhos de ódio
Vermelhos de sangue vertido durante séculos
Mostrar-te-ei minha palhota de capim
A cair sem reparação
Levar-te-ei às plantações
Onde sol a sol
Me encontro dobrado sobre o solo
Enquanto trabalho árduo
Mastiga meu tempo
Levar-te-ei aos campos cheios de gente
Onde gente respira miséria em toda a hora
Nada te direi
Mostrar-te-ei somente isto
E depois
Mostrar-te-ei os corpos do meu Povo
Tombados por metralhadoras traiçoeiras,
Palhotas queimadas por gente tua
Nada te direi
E saberá porque luto.


Armando Guebuza


Na zona do inimigo



as instruções foram bem precisas
todos nós as compreendemos
camaradas

“permanecer no interior do país
cumprindo tarefas que vos daremos

guardar o santo e senha
que de Dar-es-Salaam vos irá
revelar a cada um
as fronteiras da humilhação
e depois a luta e a conquista
de novas zonas libertadas”

as instruções foram bem precisas
todos nós as compreendemos
camaradas

e aguardaremos ansiosamente
o mensageiro que já tardava


Rui Nogar
Moçambique

3.27.2008


O Menino Doente


O menino dorme.

Para que o menino
Durma sossegado,
Sentada ao seu lado
A mãezinha canta:
— "Dodói, vai-te embora!
"Deixa o meu filhinho,
"Dorme . . . dorme . . . meu . . ."

Morta de fadiga,
Ela adormeceu.
Então, no ombro dela,
Um vulto de santa,
Na mesma cantiga,
Na mesma voz dela,
Se debruça e canta:
— "Dorme, meu amor.
"Dorme, meu benzinho . . . "

E o menino dorme.


Manuel Bandeira (poeta brasileiro)


Reflexivo


O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeu-se.


Affonso Romano de Sant'Anna
(poeta brasileiro)

Roça


A noite sangra
no mato,
ferida por uma aguda lança
de cólera.
A madrugada sangra
de outro modo:
é o sino de alvorada
que desperta o terreiro.
É o feitor que começa
a destinar as tarefas
para mais um dia de trabalho.

A manhã sangra ainda:
salsa a bananeira
com um machim de prata;
capinas o mato
com um machim de raiva;
abres o côco
com um machim de esperança;
cortas o cacho de andim
com um machim de certeza.

E á tarde regressas
á sanzala;
a noite esculpe
os seus lábios frios
na tua pele.
E sonhas na distância
uma vida mais livre,
que o teu gesto
há-de realizar.


Maria Manuela Margarido (poetisa sãotomense)



Criar


Criar criar
criar no espírito criar no músculo criar no nervo
criar no homem criar na massa
criar
criar com os olhos secos

Criar criar
sobre a profanação da floresta
sobre a fortaleza impúdica do chicote
criar sobre o perfume dos troncos serrados
criar
criar com os olhos secos

Criar criar
gargalhadas sobre o escárnio da palmatória
coragem nas pontas das botas do roceiro
força no esfrangalhado das portas violentadas
firmeza no vermelho sangue da insegurança
criar
criar com os olhos secos

Criar criar
estrelas sobre o camartelo guerreiro
paz sobre o choro das crianças
paz sobre o suor sobre a lágrima do contrato
paz sobre o ódio
criar
criar paz com os olhos secos

Criar criar
criar liberdade nas estradas escravas
algemas de amor nos caminhos paganizados do amor
sons festivos sobre o balanceio dos corpos em forcas simuladas
criar
criar amor com os olhos secos.


Agostinho Neto (poeta angolano)


Inscrição na Areia



O meu amor não tem
importância nenhuma
Não tem o peso nem
de uma rosa de espuma!

Desfolha-se por quem?
Para quem se perfuma?

O meu amor não tem
importância nenhuma.


Cecília Meireles (poetisa brasileira)


Além da Terra, Além do Céu


Além da Terra, além do Céu,
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastro dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar,
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fundamental essencial,
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar,
o verbo pluriamar,
razão de ser e de viver.


Carlos Drummond de Andrade (poeta brasileiro)


3.26.2008


Lugar do Sol

Há um lugar na mesa onde a luz
abdicou do seu ofício.
Já foi do sol
e do trigo esse lugar - agora
por mais que escutes, não voltarás
a ouvir a voz de quem,
há muitos anos, era a delicadeza
da terra a falar: "Não sujes
a toalha"; "Não comes a maçã?"
Também já não há quem se debruce
na janela para sentir
o corpo atravessado pela manhã.
Talvez só um ou outro verso
consiga juntar no seu ritmo
luz, voz, maçã.

Eugénio de Andrade

Cantiga de Amigo



Nem um poema nem um verso nem um canto
tudo raso de ausência tudo liso de espanto
e nem Camões Virgílio Shelley Dante
- o meu amigo está longe
e a distância é bastante.

Nem um som nem um grito nem um ai
tudo calado todos sem mãe nem pai
Ah não Camões Virgílio Shelley Dante!

- o meu amigo está longe
e a tristeza é bastante.

Nada a não ser este silêncio tenso
que faz do amor sozinho o amor imenso.
Calai Camões Virgílio Shelley Dante:
o meu amigo está longe
e a saudade é bastante!


Ary dos Santos


Distante Melodia


Num
sonho de Íris morto a oiro e brasa,
Vem-me lembranças doutro tempo azul
Que me oscilava entre véus de tule –
Um tempo esguio e leve, um tempo-asa

Então os meus sentidos eram cores,
Nasciam num jardim as minhas ânsias,
Havia na minha alma outras distâncias –
Distancias que o segui-las era flores...

Caía oiro se pensava estrelas,
O luar batia sobre o meu alhear-me...
– noites-lagoas, como éreis belas
– sob terraços-lis de recordar-me!...

Idade acorde de inter-sonho e Lua
Onde as horas corriam sempre jade,
Onde a neblina era uma saudade,
E a luz – anseios de Princesa nua ...

Balaústres de som, arcos de amar,
Pontes de brilho, ogivas de perfume...
Domínio inexprimível de ópio e lume
Que nunca mais, em cor, hei–de habitar...

Tapetes de outras Pérsias mais Oriente...
Cortinados de Chinas mais marfim...
Áureos templos de ritos de cetim...
Fontes correndo sombra, mansamente...

Zimbórios-panteões de nostalgias,
Catedrais de ser – eu por sobre o mar ...
Escadas de honra, escadas só, ao ar ...
Novas Bizancios – Alma, outras Turquias...

Lembranças fluidas ...cinza de brocado ...
Irrealidade anil que em mim ondeia ...
Ao meu redor eu sou Rei exilado,
Vagabundo dum sonho de sereia...


Mário de Sá-Carneiro

A minha tragédia


Tenho ódio à luz e raiva à claridade
Do sol, alegre, quente, na subida.
Parece que a minh’alma é perseguida
Por um carrasco cheio de maldade!


Ó minha vã, inútil mocidade,
Trazes-me embriagada, entontecida!...
Duns beijos que me deste noutra vida,
Trago em meus lábios roxos, a saudade!...


Eu não gosto do sol, eu tenho medo
Que me leiam nos olhos o segredo
De não amar ninguém, de ser assim!


Gosto da Noite imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!...


Florbela Espanca