9.30.2008

Escuta...

À Beatriz Carvalho


Escuta, amor, escuta a voz que ao teu ouvido
Te canta uma canção na rua em que morei,
Essa soturna voz há de contar-te, amigo
Por essa rua minha os sonhos que sonhei!

Fala d'amor a voz em tom enternecido,
Escuta-a com bondade. O muito que te amei
Anda pairando aí em sonho comovido
A envolver-te em oiro!... Assim s'envolve um rei!

Num nimbo de saudade e doce como a asa
Recorta-se no céu a minha humilde casa
Onde ficou minh'alma assim como penada

A arrastar grilhões como um fantasma triste.
É dela a voz que fala, é dela a voz que existe
Na rua em que morei... Anda crucificada!

Florbela Espanca

9.29.2008

Viste o cavalo varado a uma varanda?


Viste o cavalo varado a uma varanda?
Era verde, azul e negro e sobretudo negro.
Sem assombro, vivo da cor, arco-íris quase.
E o aroma do estábulo penetrando a noite.

Do outro lado da margem ascendia outro astro
como uma lua nua ou como um sol suave
e o cavalo varado abria a noite inteira
ao aroma de Junho, aos cravos e aos dentes.

Uma língua de sabor para ficar na sombra
de todo um verão feliz e de uma sombra de água.
Viste o cavalo varado e toda a noite ouviste
o tambor do silêncio marcar a tua força


e tudo em ti jazia na noite do cavalo.


António Ramos Rosa


9.28.2008

O nome parece a infância


O nome parece a infância.
Quando na velhice é termos vindo
Sem pressa

Para dentro
Do nome se esvazia o corpo quando o corpo cai
É um fruto.

O nome é ainda
O modo como chamas.

O nome é a arma contra mim. O maior perigo.
Com os teus lábios podes destruir-me.


Daniel Faria

Alvorada



(um canto de confiança)

Sobre ti,
com o sangue
e a tristeza que nasceu em nós,
desce a luz do dia que se faz.
Como morre na terra a vida,
para que outras vidas germinem ao sol,
como se entrega crepitando ao fogo
o ramo forte da árvore,
assim,
vida e calor,
grito novo de esperança,
chegas tu, no mistério do luto.
E ainda doloridas
te oferecemos as nossas mãos trabalhadoras,
vermelhos e tristes
te entregaremos os nossos olhos vigilantes,
e as nossas vidas de combatentes
mil vezes serão tuas,
no grito novo e enorme
como o flutuar da bandeira que içaste:
A luta continua


e sobre ti,
com a tristeza de manhã de Fevereiro,
com a esperança do Sol que nasce,
com a força imensa da vida
que cresce no ventre da mulher,
sobre ti,
desce a confiança do partido e do povo.
A ti,
reivindicamos a purificação e vingança
que o nosso sentido de justiça exige,
queremos um fogo ainda maior
que ao marulhar das ondas do Índico
respondam os canhões da esperança,
que o limpopo transporte convulsivas
as carcaças de pontes,
que o Zambebe se transforme em Rovuma de Maputo
e a tua mensagem
faça de nós ciclone devastando o inimigo.
E queremos
no amor que te damos,
na fé em que te envolvemos,
que nos transportes ao futuro
e faças da esperança das buganvílias
grite alegria na pátria
e o sangue se torne apenas recordação.
À Pátria que ele nos deixou
deves acrescentar a revolução que a bomba
deixou incompleta
e de nosso grito
Independência ou morte
queremos construída
a realidade do
Venceremos


Sérgio Vieira
Moçambique
Um Homem nunca chora


Acreditava naquela história
do homem que nunca chora.

Eu julgava-me um homem.

Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.

Agora tremo.
E agora choro.

Como um homem treme.
Como chora um homem!

José Craveirinha

Agora É



Agora é diferente
Tenho o teu nome o teu cheiro
A minha roupa de repente
ficou com o teu cheiro

Agora estamos misturados
No meio de nós já não cabe o amor
Já não arranjamos
lugar para o amor

Já não arranjamos vagar
para o amor agora
isto vai devagar
isto agora demora


Manuel António Pina

Coração Polar


I

Não sei de que cor são os navios
quando naufragam no meio dos teus braços
sei que há um corpo nunca encontrado algures no mar
e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial
a tua promessa nos mastros de todos os veleiros
a ilha perfumada das tuas pernas
o teu ventre de conchas e corais
a gruta onde me esperas
com teus lábios de espuma e de salsugem
os teus naufrágios
e a grande equação do vento e da viagem
onde o acaso floresce com seus espelhos
seus indícios de rosa e descoberta.
Não sei de que cor é essa linha
onde se cruza a lua e a mastreação
mas sei que em cada rua há uma esquina
uma abertura entre a rotina e a maravilha .
há uma hora de fogo para o azul
a hora em que te encontro e não te encontro
há um ângulo ao contrário
uma geometria mágica onde tudo pode ser possível
há um mar imaginário aberto em cada página
não me venham dizer que nunca mais
as rotas nascem do desejo
e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos
quero o teu nome escrito nas marés
nesta cidade onde no sítio mais absurdo
num sentido proibido ou num semáforo
todos os poentes me dizem quem tu és.


Manuel Alegre

Inter-Sonho

Dream Art Print by Grace Pullen

Numa incerta melodia
Tôda a minh'alma se esconde
Reminiscencias de Aonde
Perturbam-me em nostalgia...

Manhã d'armas! Manhã d'armas!
Romaria! Romaria!

. . . . . . . . . . . . . . .

Tacteio... dobro... resvalo...

. . . . . . . . . . . . . . .

Princesas de fantasia
Desencantam-se das flores...

. . . . . . . . . . . . . . .

Que pesadêlo tão bom...

. . . . . . . . . . . . . . .

Pressinto um grande intervalo,
Deliro todas as côres,
Vivo em roxo e morro em som...

Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'
Carlos Paredes (1925-2004)



A palavra por dentro da guitarra
a guitarra por dentro da palavra.
Ou talvez esta mão que se desgarra
(com garra com garra)
esta mão que nos busca e nos agarra
e nos rasga e nos lavra
com seu fio de mágoa e cimitarra.

Asa e navalha. E campo de Batalha.
E nau charrua e praça e rua.
(E também lua e também lua).
Pode ser fogo pode ser vento
(ou só lamento ou só lamento).

Esta mão de meseta
voltada para o mar
esta garra por dentro da tristeza.
Ei-la a voar ei-la a subir
ei-la a voltar de Alcácer Quibir.

Ó mão cigarra
mão cigana
guitarra guitarra
lusitana.

Manuel Alegre

Apoteose


Flower Bud Photographic Print by Nicole Katano

Mastros quebrados, singro num mar d'Ouro
Dormindo fôgo, incerto, longemente...
Tudo se me igualou num sonho rente,
E em metade de mim hoje só móro...

São tristezas de bronze as que inda choro -
Pilastras mortas, marmores ao Poente...
Lagearam-se-me as ânsias brancamente
Por claustros falsos onde nunca óro...

Desci de mim. Dobrei o manto d'Astro,
Quebrei a taça de cristal e espanto,
Talhei em sombra o Oiro do meu rastro...

Findei... Horas-platina... Olor-brocado...
Luar-ânsia... Luz-perdão... Orquideas pranto...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

- Ó pantanos de Mim - jardim estagnado...


Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro'

Reminiscência

Casario

"...Lisboa, Santarém, Porto, Leiria..."
(eu sabia de cor toda a geografia)
O Senhor Inspector
deu-me a nota mais alta em geografia
e disse gravemente:
- "Continua. Hás-de ser gente..." -

"Ângulo recto, agudo,
cateto, hipotenusa...
(já manchara de giz a minha blusa
mas respondia a tudo
e a professora sorria
enquanto eu papagueava a geometria)
"...D.Sancho, o Povoador...
D.Dinis, o Lavrador...
(Tinha então boa memória,
sabia as datas da história...)
1580
1640
1143
em Arcos de Valdevez...
(Muito bem, sim senhor!
A pequena é simpática)
E depois, em voz alta, o senhor Inspector:
- Vamos à gramática." -

"...E, nem, não só, mas também...
conjunções copulativas"
(Eu pensava na alegria
que ia dar a minha mãe,
nas frases admirativas
da velha D.Maria,
a minha primeira mestra:
- Tão novinha e ficou "bem"!" -
e esta suavíssima orquestra
acompanhava em surdina
o meu primeiro exame de menina
aplicada, orgulhosa e inteligente...)

- "Vá ao quadro, menina! Docilmente
fiz os problemas, dividi fracções,
disse as regras das quatro operações
e finalmente
O Senhor Inspector felicitou-me,
quis saber o meu nome
e declarou-me
que ficara "distinta" sem favor.

Ah! que esplendor!
Que alegria total e sem mistura,
que orgulho, que vaidade!
Olhei de frente o sol e a claridade
não me cegou, julguei-a quase escura...
As estrelas, fitei-as como iguais.
Melhor: como rivais...
E a Humanidade
pareceu-me um rebanho sem vontade,
uma vasta colónia de formigas...
(As minhas pobres, tímidas amigas!)
Pouco depois, em casa, a testa em fogo, o olhar em brasa,
gritei num desafio
à terra, ao céu, ao mar, ao rio:
- "O mãe, eu já sei tudo!"
No seu olhar tranquilo de veludo,
no seu olhar profundo,
que era todo o meu mundo,
passou uma ironia tão velada,
uma ironia
tão funda, tão calada,
que ainda hoje murmuro cada dia:
"-O mãe, eu não sei nada!..."

Fernanda de Castro



9.27.2008

Seria Eterno

Le Temps Suspendu Art Print by Bernadette Triki

Seria eterno, se não fosse entrando
por aquele país de solidão,
aonde ver a luz alarga, quando
e alarga, à volta, a vinda do verão.

Seria eterno. Assim somente o brando
movimento de entrar se lhe mensura,
conforme ver, ao ir-se dilatando,
amplia o campo útil da ternura.

E, enquanto entra, um cântico de brisa
lembra quanto por campos foi outrora
tempo apagando a sua face lisa,

qual se alisando, se apagasse a hora.
E, indo entrando, a solidão se irisa
e o vai esquecendo pelo tempo fora.

Fernando Echevarría (poeta timorense)



9.26.2008


Batuque


Marimbas, ngomas, zabumbas,
guizos, quissanges, chigufos...
Batuque doido – loucura
regada pelos marufos...

Bailados sensuais, ardentes;
perturbante orquestração;
canções sentidas, dolentes,
que brotam do coração.

E aquela negra, que dança
mais esbelta e mais torcida,
é mesmo a imagem do Sonho
fazendo bailar a vida!

O batuque me atordoa.
E eu me encanto e me confundo
Nesta loucura que voa
e soa longe do mundo...

E sinto dentro da alma
este batuque sem fim!
Eu sinto bem o batuque
a gritar dentro de mim!


Geraldo Bessa Víctor (poeta angolano)

O que dizemos


O que dizemos,
Ninguém dirá
Como dizemos:
Palavra e gesto
Voz e acento
Calor e ritmo,
É tudo ímpar
É tudo novo
É tudo único.
Somos partículas
Inconfundíveis
Da Eternidade.

Carlos Queirós


Tempo, subitamente solto...


Tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava, quando imaginava que amava, era a tua
tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu
rosto,
era a tua pele, antes de te conhecer, existia
nas árvores
nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.


José Luís Peixoto

Canção de amor


Eu cantaria mesmo que tu não existisses,
faria amor, assim, com as palavras.
Eu cantaria mesmo que tu não existisses
porque haveria de doer-me a tua ausência.

Por isso canto. Alegre ou triste,canto.
Como se, cantando, tocasse a tua boca,
ainda antes da tua presença.
Direi mesmo, depois da tua morte.

Eu cantaria mesmo que tu não existisses,
ó minha amiga, doce companheira.
Eu festejo o teu corpo como um rio,
onde, exausto, chegarei ao mar.

Sim, eu cantaria mesmo que tu não existisses,
porque nada eu direi sem o teu nome.
Porque nada existe além da tua vida,
da tua pele macia, dos teus olhos magoados.

Assim quero cantar-te meu amor,
para além da morte, para além de tudo.

Joaquim Pessoa


Foi um dia de inúteis agonias,
– Dia de sol, inundado de sol.
Fulgiam, nuas, as espadas frias.
– Dia de sol, inundado de sol.

Foi um dia de falsas alegrias.
– Dália a esfolhar-se, o seu mole sorriso.
Voltavam os ranchos das romarias.
– Dália a esfolhar-se, o seu mole sorriso.

Dia impressível, mais que os outros dias.
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido!
Difuso de teoremas, de teorias...

O dia fútil, mais que os outros dias!
Minuete de discretas ironias...
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido!

Camilo Pessanha


Quantas vezes...



Quantas vezes caminhei pela praia
à espera que viesses. Luas
inteiras. Praias de cinza invadidas
pelo vento. Quantas estações quantas noites
indormidas. Embranqueceram-me
os cabelos. E só hoje
quando exausto me deitei em mim
reparei
que sempre estiveste a meu lado. Na cal frágil
dos meus ossos. Nas hastes do mar
infiltradas no sangue. Na película
dos meus olhos quase cegos.

Casimiro de Brito


As Vozes


A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta

- Quem é?
- É a mãe morta
- São coisas passadas
- Não é ninguém

Tanta vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós?

Manuel António Pina



Erótica


A noite descia
como um cortinado
sobre a erva fria
do campo orvalhado.

e eu (fauno em vertigem)
a rondar em torno
do teu corpo virgem,
sonolento e morno,

pensava no lasso
tombar do desejo;
em breve, o cansaço
do último beijo...

E no modo como
sentir menos fácil
o maduro pomo
do teu corpo grácil:

ou sem lhe tocar
– de tanto o querer! –
ficar a olhar,
até o esquecer,

ou como por entre
reflexos do lago,
roçar-lhe no ventre
luarento afago;

perpassando os meus
nos teus lábios húmidos,
meu peito nos teus
brancos
seios
túmidos...


Carlos Queirós
na quietude cristalina da alvorada



na quietude cristalina da alvorada

como se imóvel o bando de patos bravos
cruzava o céu
o hipopótamo fendia silente o jade
das águas
o jacaré jazia inerte no limo opaco
a garça debicava a compasso sapos
no lodo
o canavial remexia suave as pontas
amarelas
a brisa afagava leve o capim ralo
das margens
o arvoredo sacudia gentil da folhagem
o sereno da noite
o fumo subia vagaroso dos quimbos
em redor
e
o tiro ribombava assassino

na quietude cristalina da alvorada


Arlindo Barbeitos (poeta angolano)

9.25.2008

Não venhas mais ao cais, menina negra


Não venhas mais ao cais, menina negra.
Que esperas tu ainda?
Já sabes a tua sina:
o branco que partiu não volta mais!

E tu, olhando o cais,
menina negra linda,
vês o teu lindo sonho que já finda...

Cantaram o feitiço do teu corpo,
nessa noite sensual em que tiveste
por lençol nupcial uma folha de palma;
cantaram o feitiço do teu corpo,
mas não sabias nem soubeste
que o branco tem feitiço na alma.

Habituada ao balouço da canoa
nas margens do rio Dande,
e depois embalada pelo amor,
sonhaste viajar num enorme vapor
que navega no mar grande e vai para Lisboa!

Ouve, menina negra: mato não é cidade,
oceano não é rio, dongo não é navio
e o sonho que sonhaste não é sonho, é saudade...

Não venhas mais ao cais,
que o branco não volta mais!

Geraldo Bessa Vitor (poeta angolano)

Teia de aranha


Teci durante a noite a teia astuciosa
Dum poema.
Armei o laço ao sol que há-de nascer.
Rede frágil de versos,
É nela que o meu sono se futura
Eterno e natural,
Embalado na própria sepultura.
Vens ou não vens agora, astro real,
Doirar os fios desta baba impura?

Miguel Torga


Por exemplo, o fogo.



Por exemplo, o fogo.
O fogo estabelece o seu trabalho,
a sua centígrada destreza para arder.
E não sei se notaste
que na digital matriz das suas febres
o fogo opõe-se,
insubmisso,
a morrer.

Arde como se definitivo
e quando assim sucede tende a crescer,
busca aquela leveza das altas labaredas,
a implícita tontura das fagulhas.
O fogo arde como se quisesse fugir do chão,
das suas cavernas metalúrgicas,
ascende ao impulso dos foguetões,
à infância astral, à casa solar.

O fogo entristece, por vezes.
Chora inflamável na sua fatalidade terrestre
a estranha e lenhosa prisão
que o prende e embrutece.

Quer voar,
quer a sua ancestral condição de estrela
mas na corrida espacial com que o fogo queima,
na perpétua evasão,
a gula intestina-o
à sua pressa.

Eduardo White
Moçambique

9.24.2008

Canção

Hebergeur d'images


Nunca eu tivera querido
Dizer palavra tão louca:
bateu-me o vento na boca
e depois no teu ouvido.

Levou somente a palavra,
deixou ficar o sentido.

O sentido está guardado
no rosto com que me miro,
neste perdido suspiro
que te segue alucinado,
no meu sorriso suspenso
como um beijo malogrado.

Nunca ninguém viu ninguém
que o amor pusesse tão triste.
Essa tristeza não viste,
e eu sei que ela se vê bem...
Só se aquele mesmo vento
fechou teus olhos, também...


Cecília Meireles (poetisa brasileira)

Amas e amos


Ilha - Gentes e costumes XIX


Babos, Amas, Muénhes, Nunos
dão-nos o destino à inocência
para que os muros altos nos desvendem
seus quintais ilhados
e sejam limpas e lisas
as varandas da nossa adolescência


Júlio Carrilho
Moçambique
R. B.



Escrevo-te cartas longas em longas tardes de esplanada
E repito constantemente coisas datas e palavras
Nas tuas praias e nos teus livros respiro os poemas
Como se fosse possível eu compreender tudo

Escrevo-te cartas que não chego nunca a pôr no correio
Não sei a tua actual direcção nem saberei
Se mesmo tendo direcção gostarias de as receber
Ou se a leitura te poderia provocar alguma alegria

Escrevo-te cartas e demoro-me com medo na tarde
Quando o céu se transforma numa nuvem cinzenta
Que se abre como se fosse a boca de alguém
À procura das palavras soletradas pela morte

Ruy Belo

9.23.2008

Desabafo


Oh! Que bom seria transformar
Os falcões em pombas
E fazer as pombas sorrirem na Primavera
Oh! Como gostaria eu
De beijar na boca a madrugada
E afagar com os meus dedos
os cabelos do futuro
para que a paz e a liberdade
fossem universais.

Vasco Cabral (poeta guineense)

Lira Romantiquinha


Por que me trancas
o rosto e o sorriso
e assim me arrancas
do paraíso?

por que não queres
deixando o alarme
(ai, Deus: mulheres)
acarinhar-me?

Por que cultivas
as sem-perfumes
e agressivas
flores do ciúme?

Acaso ignoras
que te amo tanto,
todas as horas,
já nem sei quanto?

Visto que em suma
é todo teu,
de mais nenhuma
o peito meu?

Anjo sem fé
nas minhas juras
porque é que é
que me angusturas?

Minh'alma chora
frio e tristinho
não te comove
este versinho?

Carlos Drummond de Andrade (poeta brasileiro)

Louvação da cidade do Rio de Janeiro


Louvo o Padre, louvo o Filho
E louvo o Espírito Santo.
Louvado Deus, louvo o santo
De quem este Rio é filho.
Louvo o santo padroeiro
- Bravo São Sebastião -
Que num dia de janeiro
Lhe deu santa defensão.

Louvo a Cidade nascida
No morro Cara de Cão.
Logo depois transferida
Para o Castelo, e de então
Descendo as faldas do outeiro,
Avultando em arredores,
Subindo a morros maiores
Grande Rio de Janeiro!

Rio de Janeiro, agora
De quatrocentos janeiros...
Ó Rio de meus primeiros
Sonhos! (A última hora
De minha vida oxalá
Venha sob teus céus serenos,
Porque assim sentirei menos
O meu despejo de cá.)

Cidade de sol e bruma,
Se não és mais capital
Desta nação, não faz mal:
Jamais capital nenhuma,
Rio, empanará teu brilho,
Igualará teu encanto.
Louvo o Padre, louvo o Filho
E louvo o Espírito Santo.

Manuel Bandeira (poeta brasileiro)

O menino e o arco



O menino tem um arco.

É de plástico.

(Mas é de ouro
ou de ferro
ou de prata
- quem o sabe?)

E com ele
o menino colhe flores
e estrelas e algas
da funda claridade.
Nunca pássaros.

Esses, pousam no arco
enquanto o menino dorme
sob as árvores,
como um guerreiro cansado.

Glória de Sant'Anna

Pena



Zangado
acreditas no insulto
e chamas-me negro.

Mas não me chames negro.

Assim não te odeio.
Porque se me chamas negro
encolho os meus elásticos ombros
e com pena de ti sorrio.

José Craveirinha

Birras



Quando,
uma das minhas camisas se extraviava
somente Maria tinha absoluta certeza
de ter sido a reincidente
minha inata amnésia
que me fazia perder as coisas que resolvia dar.

Com sua
enigmática expressão repreensiva
lá ia Maria buscar mais roupas minhas
e também outras suas
para enfatizar meu defeito
junto do novo dono da camisa.

Com a minha Maria
mais ou menos era deste modo
que nossas duas maneiras de ser
destoavam, ainda bem


José Craveirinha



9.22.2008

Teatro da Boneca



A menina tinha os cabelos louros.
A boneca também.
A menina tinha os olhos castanhos.
Os da boneca eram azuis.
A menina gostava loucamente da boneca
A boneca ninguém sabe se gostava da menina.
Mas a menina morreu.
A boneca ficou.
Agora já ninguém sabe se a menina gosta da boneca.

E a boneca não cabe em nenhuma gaveta.
A boneca abre as tampas de todas as malas.
A boneca é maior que a presença de todas as coisas.
A boneca está em toda a parte.
A boneca enche a casa toda.

É preciso esconder a boneca.
É preciso que a boneca desapareça para sempre.
É preciso matar, é preciso enterrar a boneca.
A boneca.
A boneca.

Carlos Queirós



Um vento surdo liga...
Um vento surdo liga
o A e o B. É leve o alfabeto.
Do figo traz o estorninho
a polpa. Leviano universo,
mais do que leve, airado
pedestal de nula estátua.
Contudo, em um momento existem
o vento, o voo, os pontos
de partida e de chegada.
Em um momento, digo. Um só.
Depois a nova coisa ignora
outra coisa anterior. Não há.

Pedro Tamen



Às vezes despedimo-nos tão cedo
que nem lágrimas há que suportem
o peso da voz à solidão exposta
ou
de lisboa no corpo o peso triste

Às vezes é tão cedo que nos vemos
omitidos
enquanto expõe
o peso insuportável do amor
a despedida

É tão cedo por vezes que lisboa
estende sobre os corpos o desgosto

Com os dedos no crânio despedimo-nos

Gastão Cruz

Pode uma rosa



Pode uma rosa
sofrer de insuficiência cardíaca?
Podem substituir-lhe
as coronárias por uma safena
que não contava com essa?
Podem as dificuldades ser maiores,
ou menores, conforme
a rosa seja branca ou vermelha?
A rosa do povo
que rompe do asfalto
perde o fôlego ao subir as escadas?
A rosa murcha mais depressa,
que o homem, é certo. Os meus espinhos,
voltados para dentro, ferem-me
a mim mesmo. Toda uma lista
de diferenças se pode fabricar
para mostrar o absurdo
da rosa cardíaca.
Não preciso reflectir muito
para saber
que não sou uma rosa. E a rosa
poderá ter água nos pulmões?
Há hospitais para rosas?


Egito Gonçalves
Quando o amor morrer


Quando o amor morrer dentro de ti,
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o noturno calor que se debruça
Sobra as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços
A Deus e aos sonho que gelaram.

Ruy Cinatti (poeta timorense)

9.21.2008

Regresso


E contudo perdendo-te encontraste.
E nem deuses nem monstros nem tiranos
te puderam deter. A mim os oceanos.
E foste. E aproximaste.

Antes de ti o mar era mistério.
Tu mostraste que o mar era só mar.
Maior do que qualquer império
foi a aventura de partir e de chegar.

Mas já no mar quem fomos é estrangeiro
e já em Portugal estrangeiros somos.
Se em cada um de nós há ainda um marinheiro
vamos achar em Portugal quem nunca fomos.

De Calicute até Lisboa sobre o sal
e o Tempo. Porque é tempo de voltar
e de voltando achar em Portugal
esse país que se perdeu de mar em mar.


Manuel Alegre


Exercício


Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio,
e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco
com o álcool da memória, para que se
transformem num licor de remorso; outras,
guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,
a quem me perguntou o que significavam.
Mas o silêncio de onde as palavras saíram
volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor
do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras
que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só
o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.

Nuno Júdice

9.20.2008


No Laranjal


Crescent Moon Oranges Art Print by Miles Graff

O caseiro tem um lugar cativo no laranjal,
que não é o da memória, mas o da suspeita,
tal como os lugares dos vivos. Por exemplo,
se tu estás, vejo-te porque suspeito
de que a tua presença veio. Suspeito de mim
porque te reconheci. E tão grande alegria
dão os vivos quanta os mortos,
quando, como o caseiro, pegam na enxada
ou na navalha, aparam um pequeno ramo,
para a enxertia. Tu meu amante morto,
vieste também, porque há tanto tempo suspeito
de que a tua presença, agora insubstancial,
não caberia nunca na memória. Fosses tu
um homem dos ofícios rurais, e ainda habitarias
os campos, não, nunca, na memória, mas aqui.
Ou tal como os outros mortos cuidadosos,
em corpo visto, na luz reconhecida,
nesta suspeita que receio do real,
como se eu tentasse entender uma pintura eterna.


Fiama Hasse Pais Brandão

9.19.2008


Tecendo a manhã





Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
Que, tecido, se eleva por si: luz balão.


João Cabral de Melo Neto (poeta brasileiro)

9.18.2008



O primeiro sopro arrancou-lhe a roupa;
o imediato levou também a carne.
Ao longo da rua
durante alguns segundos correu o esqueleto.
Mas a rua já não estava,
estava toda no ar;
de lá caíam bocados de prédios, bocados
de crianças, restos de cadilaques...
O esqueleto não compreendia sozinho
aquela situação:
deixou-se tombar sobre algumas pedras radioactivas
e permitiu na queda o extravio de alguns ossos.

(Caso curioso: o coração
pulsou ainda três ou quatro vezes
entre o gradeamento das costelas.)


Egito Gonçalves


Perdão




Aqui me tens, meu Deus, em confissão.
Não roubei. Não matei. Não caluniei.
Mas nem sempre segui a tua lei,
nem sempre fui a irmã do meu irmão.
Não recusei aos outros o meu pão.
Amor, algumas vezes, recusei.
Mas por tudo o que dei e o que não dei,
eu te peço, meu Deus, o meu perdão.
Perdão para os meus pecados conscientes
e para os meus pecados inocentes,
para o mal que já fiz e ainda fizer ...
Perdão para esta culpa original,
para este longo e complicado mal:
o crime sem perdão de ser mulher.

Fernanda de Castro

9.17.2008


Casinhas pequenas


casinhas pequenas
abrigando
histórias das histórias da história
se fazendo
e inda outras
casinhas pequenas
abrigando
famílias das famílias da família
se fazendo
e inda outras
histórias das histórias da história
e inda outras
famílias das famílias da família
e inda outras
se emaranhando
em um novelo
que
cresce cresce cresce
em casinhas pequenas


Arlindo Barbeitos (poeta angolano)

9.16.2008


Poesia Africana



Lá no horizonte
o fogo
e as silhuetas escuras dos imbondeiros
de braços erguidos.
No ar o cheiro verde das palmeiras queimadas.

Poesia africana.

Na estrada
a fila de carregadores bailundos
gemendo sob o peso da crueira.
No quarto
a mulatinha de olhos meigos
retocando o rosto com rouge e pó de arroz.
A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas.
Na cama
o homem insone pensando
em comprar garfos e facas para comer à mesa.

No céu o reflexo
do fogo
e as silhuetas dos negros batucando
de braços erguidos.
No ar a melodia quente das marimbas.

Poesia africana.

E na estrada os carregadores
no quarto a mulatinha
na cama o homem insone.

Os braseiros consumindo
consumindo
a terra quente do horizonte em fogo.


Agostinho Neto (poeta angolano)
Ode ao Gato

Domestic Cat, Two White Persian-Cross Kittens, One Odd-Eyed Photographic Print by Jane Burton

Tu e eu temos de permeio
a rebeldia que desassossega,
a matéria compulsiva dos sentidos.
Que ninguém nos dome,
que ninguém tente
reduzir-nos ao silêncio branco da cinza,
pois nós temos fôlegos largos
de vento e de névoa
para de novo nos erguermos
e, sobre o desconsolo dos escombros,
formarmos o salto
que leva à glória ou à morte,
conforme a harmonia dos astros
e a regra elementar do destino.

José Jorge Letria

9.15.2008

Músicas



Desculpo-me dos outros com o sono da minha filha.
E deito-me a seu lado,
a cabeça em partilha de almofada.

Os sons dos outros lá fora em sinfonia
são violinos agudos bem tocados.
Eu é que me desfaço dos sons deles
e me trabalho noutros sons.

Bartók em relação ao resto.

A minha filha adormecida.
Subitamente sonho-a não em desencontro como eu
das coisas e dos sons, orgulhoso
e dorido Bartók.

Mas nunca como eles
bem tocada
por violinos certos.



Ana Luísa Amaral

9.14.2008

Voar...

Hebergeur d'images

Que é voar?
É só subir no ar,
levantar da terra o corpo,
os pés?
Isso é que é voar?
Não.

Voar é libertar-me,
é parar no espaço inconsistente
é ser livre, leve, independente
é ter a alma separada de toda a existência
é não viver senão em não-vivência

E isso é voar?
Não.
Voar é humano
é transitório,
momentâneo...
Aquele que voa tem de pousar em algum lugar:
isso é partir
e
não voltar.

Ana Hatherly


Ser ou não ser


Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.
Se os novos partem e ficam só os velhos
e se do sangue as mãos trazem a marca
se os fantasmas regressam e há homens de joelhos
qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.

Apodreceu o sol dentro de nós
apodreceu o vento em nossos braços.
Porque há sombras na sombra dos teus passos
há silêncios de morte em cada voz.

Ofélia-Pátria jaz branca de amor.
Entre salgueiros passa flutuando.
E anda Hamlet em nós por ela perguntando
entre ser e não ser firmeza indecisão.

Até quando? Até quando?

Já de esperar se desespera. E o tempo foge
e mais do que a esperança leva o puro ardor.
Porque um só tempo é o nosso. E o tempo é hoje.
Ah se não ser é submissão ser é revolta.
Se a Dinamarca é para nós uma prisão
e Elsenor se tornou a capital da dor
ser é roubar à dor as próprias armas
e com elas vencer estes fantasmas
que andam à solta em Elsenor.

Manuel Alegre