5.31.2009

Desmedida papoila ou o destino de se perder



Papoila vermelha
E branca também
Vi-te na Primavera
E sempre com alguém.

Fragilidade é teu tempero
Cercando terra e céus
Dando esperança ou desespero
A quem sempre te bebeu!…

De vermelho cobres searas
Como rainha exuberante
Mas passa o vento e leva
O perfume de ser amante.

Nos campos perdida
Sempre à espera de alguém
Perguntando à desmedida!
Se o amor medida tem?!!!

Alegra quem passa
Se longe estiver
Papoila ama a saudade
De quem "por ela se perder"

Meu amigo viajante
Se bom destino queres ter!
Não desfolhes papoila
Sem primeiro te rever!…


Alice Tomé

5.29.2009

Não me lavem o rosto


Não me lavem os olhos!
Não; já disse não!
Deixai-me ver,
sentir, viver tudo em mim
mas não me lavem os olhos!

Deixai-me crer por mim
aceitar a realidade
mas não me barrem a caminhada
não me lavem os olhos!

Deixai-me sofrer realidade
ao sonhar fraternidade
mas... por favor...
não me lavem os olhos!


Sukrato
Cabo Verde

5.28.2009

O rio quando antilira


O rio explode. Quando as mãos
dos anjos vêm varrer a névoa.
Ungido primeiro da tristeza,
escurece-lhe a voz
nas locas onde canta o pez.

Escuto-lhe os decibéis da ira
quando por uma tarde navegável
solta seu manancial de gritos:
já não é essa mansidão que ronronam
os líricos, mas um aguilhão
saltando às têmporas.

Mar e margem amparam o fragor
que leva o desalinho às vísceras.
Na máquina do poema
é lenta a combustão que devolve
o tejo ao afago que tantas metáforas
sussurrou aos zelosos funcionários da musa.

Não há, porém, métrica que cinja
a voz de um rio quando suspira nas entranhas
avivando um passado que é cisco na memória.


José Luíz Tavares
Cabo Verde

A cinza de luz é tanta que não posso abandonar-me.


A cinza de luz é tanta que não posso abandonar-me.

Lento sofrimento este
sem tocar dedos de sombra, queimaduras ou luva.
Ou respirar de outro ser, tão fuído, desolado e frio.


Isabel de Sá

5.27.2009

Vigilia



Paralelamente sigo dois caminhos
Abstracto na visão de um céu profundo.
Nem um nem outro me serve, nem aquele
Destino que se insinua
Com voz semelhante à minha.
O melhor mundo
Está por descobrir.
Não sequer a lua
Nem o perfil da proa.
Vai direito
Ao vago, incerto, misterioso
Bater das velas sinalado de oculto.

Quero-me mais dentro de mim, mais desumano
Em comunhão suprema, surto e alado
Nas aragens nocturnas que desdobram as vagas,
Chamam dorsos de peixe à tona de água
E precipitam asas na esteira de luz.
Da vida nada senão a melhoria
De um paraíso sonhado e procurado
Com ternura, coragem e espírito sereno.

Doçura luminosa de um olhar. Ameno
Brincar de almas verticais em pleno
Sol de alvorada que descerra as pálpebras.


Ruy Cinatti (poeta timorense)

5.26.2009

Chapa


A nauseabunda catinga empoleirada no incómodo do chapa
Vai chapa perseguindo chapa
Ao feitiço da paça acelerada no assobio do cobrador
Motor resmungão no mais apartado desconforto
Enlatado o chapa elástico de todas as paragens
Superlotada receita galgando o vento
Com mãos no coração do destino...


Amin Nordine
Moçambique

na leveza do luar crescente






na
leveza do luar crescente
sobe
a ilusão da felicidadeAdicionar imagem
que
teu gesto distraído
me dá

como se
plumas vogando suaves
na brisa
fossem
vida de pássaro apodrecendo
na
leveza do luar crescente


Arlindo Barbeitos (poeta angolano)


Recordação



O rosto erecto
Dá a impressão de inclinado
Por certa graça esplendente
De nobreza

Rio lindo chama pura
Aparição convergida
Pelos astros espantosos
Deixas-me o corpo o teu corpo
E o desenho da tua alma
Nas minhas mãos escultoras
Deixas-me a voz essa voz
Que guarda vozes no fundo

Dos seus véus de maravilha
Deixas-me véus maravilhas
A confiança na vida
E dois lábios esmagados
Insuportáveis felizes

Alberto Lacerda
Moçambique

Mulher, casa e gato.



Uma pedra na cabeça da mulher; e na cabeça
da casa, uma luz violenta.
Anda um peixe comprido pela cabeça do gato.
A mulher senta-se no tempo e a minha melancolia
pensa-a, enquanto
o gato imagina a elevada casa.
Eternamente a mulher da mão passa a mão
pelo gato abstrato,
e a casa e o homem que eu vou ser
são minuto a minuto mais concretos.

A pedra cai na cabeça do gato e o peixe
gira e pára no sorriso
da mulher da luz. Dentro da casa,
o movimento obscuro destas coisas que não encontram
palavras.
Eu próprio caio na mulher, o gato
adormece na palavra, e a mulher toma
a palavra do gato no regaço.
Eu olho, e a mulher é a palavra.

Palavra abstrata que arrefeceu no gato
e agora aquece na carne
concreta da mulher.
A luz ilumina a pedra que está
na cabeça da casa, e o peixe corre cheio
de originalidade por dentro da palavra.
Se toco a mulher toco o gato, e é apaixonante.
Se toco (e é apaixonante)
a mulher, toco a pedra. Toco o gato e a pedra.
Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a palavra.
Toco a palavra apaixonante, se toco a mulher
com seu gato, pedra, peixe, luz e casa.
A mulher da palavra. A Palavra.

Deito-me e amo a mulher. E amo
o amor na mulher. E na palavra, o amor.
Amo com o amor do amor,
não só a palavra, mas
cada coisa que invade cada coisa
que invade a palavra.
E penso que sou total no minuto
em que a mulher eternamente
passa a mão da mulher no gato
dentro da casa.

No mundo tão concreto.


Herberto Helder
Toma lá cinco!


Encolhes os ombros, mas o tempo passa...
Ai, afinal, rapaz, o tempo passa!

Um dente que estava são e agora não,
Um cabelo que ainda ontem preto era,
Dentro do peito um outro, sempre mais velho coração,
E na cara uma ruga que não espera, que não espera...

No andar de cima, uma nova criança
Vai bater no teu crânio os pequeninos pés.
Mas deixa lá, rapaz, tem esperança:
Este ano talvez venhas a ser o que não és...

Talvez sejas de enredos fácil presa,
Eterno marido, amante de um só dia...
Com clorofila ficam os teus dentes que é uma beleza!
Mas não rias, rapaz, que o ano só agora principia...

Talvez lances de amor um foguetão sincero
Para algum coração a milhões de anos-dor
Ou desesperado te resolvas por um mero
Tiro na boca, mas de alcance maior...

Grande asneira, rapaz, grande asneira seria
Errar a vida e não errar a pontaria...

Talvez te deixes por uma vez de fitas,
De versos de mau hálito e mau sestro,
E acalmes nas feias o ardor pelas bonitas
(Como mulheres são mais fiéis, de resto...)

Alexandre O'Neill

5.25.2009

A passagem


Que me deixem passar - eis o que peço
diante da porta ou diante do caminho.
E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar, exijo estar sozinho,
somente de mim mesmo acompanhado.
Mas caso me proíbam de passar
por seu eu diferente ou indesejado
mesmo assim eu passarei.
Inventarei a porta e o caminho
e passarei sozinho.


Lêdo Ivo
Brsail
A Obra o Leva

Tuscadero I Art Print by Edwin Douglas

Depois de havê-lo feito, a obra o leva
pela tarefa maior
em que quase de si e dela se desprenda
para ampliar somente a solidão.
Mas uma solidão em que tropeça
a linha, às vezes, a descrever-se com
aquela claridade de paciência
que a leva além de onde jamais andou.
Oscila, treme, timbre de tristeza
o espaço à volta. E o sítio aonde for
será cidade surdida de uma mesa
que ele fez longínqua. E ela o coroou.

Fernando Echevarría (poeta timorense)

5.24.2009

Feminina


Não lavei os seios
pois tinham o calor
da tua mão.

Não lavei as mãos pois tinham os sons
do teu corpo.

Não lavei o corpo pois tinha os rastros
dos teus gestos; tinha também, o meu corpo,
a sagrada profanação do teu olhar
que não lavei.

Nem aqueles lençóis, não os lavei,
nem os espelhos, que continuam
onde sempre estiveram: porque eles nos viram
cúmplices, e a paixão, no paraíso,
parece que era.

Lavei, sim, lavei e perfumei
a alma, em jasmim, que é tua, só tua,
para te esperar como se nunca tivesses ido
a nenhum lugar: donde apaguei
todas as ausências que apaguei
ao teu olhar.


Soares Feitosa
Brasil

5.23.2009

Minha Sombra




De manhã a minha sombra
Com meu papagaio e o meu macaco
Começam a me arremedar.
E quando saio
A minha sombra vai comigo
Fazendo o que eu faço
Seguindo os meus passos.

Depois é meio-dia.
E a minha sombra fica do tamaninho
De quando eu era menino.
Depois é tardinha.
E a minha sombra tão comprida
Brinca de pernas de pau.

Minha sombra , eu só queria
Ter o humor que você tem,
Ter a sua meninice,
Ser igualzinho a você.

E de noite quando escrevo,
Fazer como você faz,
Como eu fazia em criança:
Minha sombra
Você põe a sua mão
Por baixo da minha mão,
Vai cobrindo o rascunho dos meus poemas
Se saber ler e escrever.

Jorge de Lima (poeta brasileiro)

Sol poente



Tardinha... "Ave-Maria, Mãe de Deus..."
E reza a voz dos sinos e das noras...
O sol que morre tem clarões d'auroras,
Águia que bate as asas pelo céu!

Horas que têm a cor dos olhos teus...
Horas evocadoras doutras horas...
Lembranças de fantásticos outroras,
De sonhos que não tenho e que eram meus!

Horas em que as saudades, p'las estradas,
Inclinam as cabeças mart'rizadas
E ficam pensativas... meditando...

Morrem verbenas silenciosamente...
E o rubro sol da tua boca ardente
Vai-me a pálida boca desfolhando...

Florbela Espanca

5.22.2009

Poesia Visual



todos os poemas são visuais
porque são para ser lidos
com os olhos que veem
por fora as letras e os espaços
mas não há nada de novo
em tudo o que está escrito
é só o alfabeto repetido
por ordens diferentes
letras palavras formas
tão ocas como as nozes
recortadas em curvas e lóbulos
do cérebro vegetal : nozes
os olhos é que veem nas letras
e nas suas combinações
fantásticas referências
vozes sobretudo da ausência
que é a imagem cheia
que a escrita inflama
até ao fogo dos sentidos
e que os escritos reclamam
para se chamarem o que são

ilusões fechadas para
os olhos abertos verem


e.m. de melo e castro

cobriu-lhe os seios



cobriu-lhe os seios de
trevos, para dar sorte, e
pintou-lhe as
unhas de escarlate

na cama de deus
dormirá, hoje, uma mulher bonita.


Renata Correia Botelho

5.21.2009

A rosa imagimária




É preciso que fique escrito
antes que a tua baba peçonhenta
nos corrompa a palavra
de ti, só se ouvirá no fim da noite
o ranger de dentes
que teu ódio acalenta
inútil e partido!

Sabes Velho Histérico
o que é Ter 29 anos, e sol
e vida?!

Acordar todas as manhãs
com a rosa imaginária
que não dou ao meu amor??

Sabes Velho Histérico
o que é Ter 29 anos, e sol
e vida?
nessa catacumba
de esqueletos onde moras?!

Sabes Velho Histérico
onde está o ventre de mundo
que seria um dia, o meu?!
Aonde está a criança
que não nasceu
nesse ventre de mundo
que seria, um dia, o meu??

Berra Velho Histérico
ainda
a tua ordem
enquanto não chega o vento!

Berra Velho Histérico
na rádio e no jornal
ainda
a tua ordem
enquanto montado no vento
não chega o fim da noite!

... e a rosa imaginária
que vou dar ao meu amor...


António Cardoso (poeta angolano)

A sós com Ganimedes




O sábio Freud não quis saber de ti
para nada. Todavia, tu serias

– muito mais do que Édipo, tão falado –
quem teria podido dar-lhe a chave

da porta que ele em vão tentou abrir.
A um canto, na sombra, como mito

rejeitado e por psicanalisar
para sempre, enigmático, ficaste.

Talvez um outro – menos distraído –
contigo venha a conversar por fim.


José António Almeida

5.19.2009

Finados



Os mortos passeiam flores pela cidade.

O poema profana novembro na tumba.

o anverso exuma o dicionário.

Precoce

a hortênsia espia a tua jardinagem


Maria do Carmo Campos
Brasil

Edital



Foi afixado
nos locais do costume
que É PROIBIDO MENDIGAR.

Logo mão que se descobre
escreveu a tinta por baixo
MAS NÃO É PROIBIDO SER POBRE.


Joaquim Namorado

5.18.2009

Sonho, vigília, noite, madrugada...

hostingpics.net

Sonho, vigília, noite, madrugada?
Um a um, desfolhei os sete véus,
e adormecido o corpo, a alma acordada,
um a um, escalei os sete céus.

Sem limites de tempo nem espaço,
quanto tempo durou minha viagem?
Andei mundos sem dor e sem cansaço,
ficou, em meu lugar, a minha imagem.

Agora, de regresso, cumpro a pena.
Tudo esqueci dessa abismal distância
mas algo é diferente: volto à arena
com uma nova inocência, um gosto a infância.

Serena, com uma paz desconhecida,
aceito, sem revolta, a humana sorte:
viver, da Vida, esta pequena vida,
morrer, da Morte, esta pequena morte.

Fernanda de Castro



A Base e o Timbre


indonesia_bergerak.jpg image by audeemirza

Iluminar-se a análise
por trás de cada ponto da pupila
desembacia a base
de ver. E ver culmina
na ordem luminosa por onde as mãos se fazem
inteligência que desliza
e arde quase
no material que surge análise
da ciência divina.

Benzo-me em nome da melancolia,
ciência teológica que funda
sermos a história reflectida
de não haver nenhuma,
senão a de um espelho que ilumina
os pensamentos da sua face pura
e onde sermos pensados nos inclina
a ver história onde só há leitura
do esquecimento e da melancolia,
ciências da lógica absoluta.


Fernando Echevarría (poeta timorense)

5.17.2009

Recua



Recua
e encontrarás um lugar
aos quatro ventos aberto.

Recua
nenhum amor se avista
assim ao perto


Nuno Higino

Eu vou partir





Eu vou partir Não indiques
A ninguém a maravilha
De partir assim sem nada
Sem sequer uma saudade

Eu vou partir Sou o vento
E não propriamente um homem
Por isso não sei chorar
A ausência nos meus dedos
Dos teus cabelos do fogo
Dos teus olhos dos teus dedos
da tua voz dos teus lábios
Eu vou partir Vou sem lábios
Vou sem voz sem nenhuns dedos
Vou sem oplhos nem cabelos
Eu vou partir Sou o vento
Antigamente era um homem
Vou inteiramente só

Alberto Lacerda
Moçambique


O sul




O sol o sul o sal
As mãos de alguém ao sol
O sal do sul ao sol
O sol em mãos de sul
E mãos de sal ao sol

O sal do sul em mãos de sol
E mãos de sul ao sol
Um sol de sal ao sul
O sol ao sul
O sal ao sol
O sal o sol
E mãos de sul sem sol nem sal

Para quando enfim amor
No sul ao sol
Uma mão cheia de sal?

Ruy Duarte de Carvalho (poeta angolano)

A terra que te ofereço



1

Quando,
ansiosa,
pela primeira vez
pisares
a terra que te ofereço,
estarei presente
para auscultar,
no ar,
a viração suave do encontro
da lua que transportas
com a sólida
a materna nudez do horizonte.

Quando,
ansioso,
te vir a caminhar
no chão de minha oferta,
coloco,
brandamente,
em tuas mãos,
uma quinda de mel
colhido em tardes quentes
de irreversível
votação ao Sul.

2

Trago
para ti
em cada mão
aberta,
os frutos mais recentes
desse Outono
que te ofereço verde:
o mês mais farto de óleos
e ternura avulsa.
E dou-te a mão
para que possas
ver,
mais confiante,
a vastidão
sonora
de uma aurora
elaborada em espera
e refletida
na rápida torrente
que se mede em cor.

3

Num mapa
desdobrado para ti,
eu marcarei
as rotas
que sei já
e quero dar-te:
o deslizar de um gesto,
a esteira fumegante
de um archote
aceso,
um tracejar
vermelho
de pés nus,
um corredor aberto
na savana,
um navegável
mar de plasma
quente.

Ruy Duarte de Carvalho (poeta angolano)

Não vale a pena pisar





O capim não foi plantado
nem tratado,
e cresceu. É força
tudo força
que vem da força da terra.
Mas o capim está a arder
e a força que vem da terra
com a pujança da queimada
parece desaparecer.
Mas não! Basta a primeira chuvada
para o capim reviver.


Manuel Rui
Angola


Fala da rainha de regresso ao Kimbo



O capitão chegou
viu e venceu.
É a sua força
de matar-me os homens.
Minha porém, maior,
é a ciência
de entender os astros.
à mão que fere e mata
oponho uma colheita de segredos.
A terra é minha
e dela me entronizo.
às gerações delego
a reconquista.
O tempo que me serve
é de outra cor
e o sol decidirá
a cor do mando.
Irmãos ouvi-me bem
eu sou rainha.
Quem vos governa os corpos
saberá
das outras heranças
para que me guardo.

De que futuro pode haver temor
para quem tanto acumula de passado?


Ruy Duarte de Carvalho (poeta angolano)

5.16.2009

Som


Alma divina,
por onde me andas?
Noite sòzinha,
lágrimas, tantas!

Que sôpro imenso,
alma divina,
em esquecimento
desmancha a vida!

Deixa-me ainda
pensar que voltas,
alma divina,
coisa remota!

Tudo era tudo
quando eras minha,
e eu era tua,
alma divina!


Cecília Meireles (poetisa brasileira)
Pátria Mãe!



Tu me viste no ventre
Tu me viste nascer
Crescer me viste
Ressurgir eu te vi
Ressurgir das entranhas coloniais.

Os teus filhos se revoltaram
Irrequietos, se levantaram
Levantaram-se firmes
Firmes numa certeza
Firmes na esperança de vencer.

Pátria Mãe, na árdua caminhada,
A vitória era único destino
A vitória era a Liberdade
A Liberdade é hoje.

Pátria Mãe, tu vives na Memória Nacional
Tu vives na Memória dos Mortos
Que te honraram com suas vidas
E por tua causa foram.

Foram e nunca mais voltarão
Nunca mais ouviremos suas vozes
Nunca mais ouviremos o eco de suas vozes
O eco de suas gargalhadas
Gargalhadas nos labirintos afins.

Nunca mais sentiremos bater o seu coração
Bater de esperança e coragem
Bater de alegria e do dever cumprido
Nunca mais lhes diremos, Camaradas!
Nunca mais contaremos o passado

O passado nos confins de Cubucaré
O passado no coração de Morés
O passado nas masmorras de Tite e afins
O passado nas submarinas da marinha
O passado nas ilhas das galinhas
O passado de reencontro da tua dignidade.

Nunca mais ouviremos a cadência de seus pés
Cadência de seus pés nas colinas de Boé
Nas lalas e matas de Nhacra
Nas matas e lalas de Guilege e Guidage
Nas matas históricas do chão de manjaco
Nunca mais mataremos saudades.

Mas um dever nos deixaram,
De vivificar a tua história heróica
De preservar as tuas conquistas
De defender a tua integridade moral e física
De construir a nação que Amílcar sonhou edificar
De preservar perenemente a tua dignidade.

E assim honrar o sacrifício superior - a morte
A morte dos teus melhores filhos
Que devemos honrar com a acção da cidadania
Honrar a Pátria que Cabral se entregou de corpo e alma
E assim, honrar perenemente a ti, oh Pátria Mãe!


José Bacar (poeta guineense)

Quando os amantes dormem



Quando as pessoas se amam e
querem se amar, selam um pacto:
dormir juntas.

E quando se fala "dormir juntos" o
sentido é duplo:

Significa primeiro amar acordado
em plena vigília da carne, mas,
depois, na lassidão do pós-gozo,
deixar os corpos lado a lado,
à deriva, dormindo, talvez.

Na verdade, os amantes, quando
são amantes mesmo, mesmo
enquanto dormem se amam.

Agora ouço esses versos de Aragón
cantados por Ferrat:

"Durante o tempo que você quiser
Nós dormiremos juntos".

E penso. É um projeto de vida, dormir juntos, continuamente.

A mesma ambigüidade: dormir/amar
juntos, dormir/acordar juntos, ou
então, dormir/morrer de amor juntos.

Deve ser por causa disto que os franceses chamam o orgasmo de "pequena morte".

Deve ser por isto que os amantes julgam poder continuar amando mesmo
através da morte, como Inês
de Castro e D. Pedro, que foram
sepultados um diante do outro, para
que no dia do reencontro um
seja o primeiro que o outro veja.

Amor: um projeto de vida, um projeto
de morte.

Se numa noite dessas o vento da insônia soprar em suas frestas, repare no
corpo dormindo despojado ao seu lado.

Ver o outro dormir é negócio de muita responsabilidade.

Mais que ver as águas de um rio
represado gerando uma usina de sonhos,
é ver uma semente na noite pedindo um guardião.

Pode ser banal, mas é isto: amar é ser
o guardião do sonho alheio.

Os surrealistas diziam: o poeta enquanto dorme trabalha.

Pois os amantes enquanto dormem,
se amam.

Se amam inconscientemente, quando
seus desejos enlaçam raízes e seivas.

O pé de um toca o pé do outro, a mão espalmada corre sobre o lençol e toca
o corpo alheio e, dormindo,
se abraçam animados.

Quando isso ocorre, pode ter vários significados.

Talvez um tenha lançado um apelo
silencioso ao outro:

"Ajude-me a atravessar esse sonho",
ou:

"Venha, sonhe esse sonho comigo,
é bonito demais".

E o outro, às vezes, sem se mexer,
parte em seu socorro.

É que certos sonhos, sobretudo os de
quem ama, não cabem num só corpo.

Transbordam os poros da noite e
pedem cumplicidade.

E se há um pesadelo, aí um se agarra
ao tronco do outro na crispação
do instante, e o corpo do parceiro é
bóia na escuridão.

Por isto, no ritual do casamento,
quando o sacerdote indaga se os que
se amam sabem que terão que se
socorrer na saúde e na doença, na
opulência e na miséria etc...

Deveria se inserir um tópico a mais
e advertir:

... Amar é ser cúmplice do sonho alheio.

Passar a metade da vida dormindo a
o lado do outro.

Há pessoas que vivem 25 anos -
bodas de prata,

50 anos - bodas de ouro, 75 anos -
bodas de diamante;

Ao lado do outro, e não sabem com
que o outro sonha.

E há quem passe uma tarde, uma
noite ou uma temporada ao lado de
um corpo e sabe seus sonhos
para sempre.

Engana-se quem escuta o silêncio
no quarto dos que amam.

Estranhos rumores percorrem o
sonho alheio.

Não é o rugir do tigre pelas brenhas.

Não é o bater das ondas na enseada.

Nem os pássaros perfurando
a madrugada.

São os sonhos dos amantes em plena elaboração.

E se numa noite dessas o vento da
insônia de novo soprar em suas
frestas, olhe pela janela os muitos apartamentos onde pulsam dormindo
os amorosos.

Quando se compra um apartamento
novo, nas alturas, alguns compram
lunetas e ficam vasculhando a vida
alheia.

Mas para ouvir o ruído dos sonhos
basta abrir os ouvidos na escuridão.

Os sonhos pulsam na madrugada.

Era uma vez um chinês que toda vez
que sonhava com sua amada
acordava perfumado.

Deve ser por isso que, ainda hoje,
o quarto dos amantes amanhece
com um perfume de almíscar, lavanda
e alfazema.

E é comum achar troféus dos sonhos
ao pé da cama de quem ama.

Quando se abre a pálpebra do dia,
aí pode-se ver um unicórnio de ouro
e uma coroas de rubis.

À noite os sonhos dos amantes
se cristalizam e de dia se liqüefazem
em beijos e lágrimas.

Quem ama diz boa-noite como quem abre/fecha a porta de um jardim.

Não apenas como quem viaja, mas
como quem vai para a colheita.

Quando se ama, acontece de um
habitar o sonho do outro,
e fecundá-lo.


Affonso Romano de Sant'Anna
Brasil
Solidão

Upload images

Imensas noites de inverno,
com frias montanhas mudas,
e o mar negro, mais eterno,
mais terrível, mais profundo.

Este rugido das águas
é uma tristeza sem forma:
sobe rochas, desce fráguas,
vem para o mundo, e retorna...

E a névoa desmancha os astros,
e o vento gira as areias:
nem pelo chão ficam rastros
nem, pelo silêncio, estrelas.

A noite fecha seus lábios
— terra e céu — guardado nome.
E os seus longos sonhos sábios
geram a vida dos homens.

Geram os olhos incertos,
por onde descem os rios
que andam nos campos abertos
da claridade do dia.


Cecília Meireles (poetisa brasileira)

5.15.2009

Os meninos de Huambo

Os (meus) meninos do Huambo




Com fios feitos de lágrimas de dor
Os meus meninos do Huambo choram
Ainda marcados pelo muito horror
da miséria e da fome onde moram

Com os lábios de muito dizer aiué
Soletram pensamentos de esperança
Como quem se alimenta de tanta fé
Inebriada pelos sorrisos de criança

Os meus meninos à volta da fogueira
Já aprenderam que dizer a verdade
Será talvez mais uma bonita bandeira
mas que o melhor é não falar de saudade

Com os sorrisos mais lindos do planalto
- Essa é uma certeza para a eternidade
Fazem contas engraçadas de sobressalto
E subtraem a fome a sonhos de igualdade

Dividem a chuva miudinha pelo milho
Como se isso fosse o seu eterno destino
Saltam ao céu toda a dor feita andarilho
No seu estilhaçado mundo peregrino

Os meus meninos à volta da fogueira
Não vão aprender novas palavras
Porque a dor da miséria é cegueira
Que alimenta todos os dias as lavras

Assim descontentes à voltinha da poesia
Juntam palavras do tempo que passa
Para ver se alimentam a barriga vazia
E se descobrem o fim de tanta desgraça.


Manuel Rui
Angola


5.14.2009





Naquele ano a chuva foi excessiva e cresceram tortulhos
no olhos dos cães. Os vitelos, ao espreitar a luz pelos
sexos das mães, afogavam-se em lama, no meio dos
sambos. As paredes das casas diluíam-se em nata e os
oleiros desistiram de encomendar a sua obra a Deus.
Enormes cuidados foram inventados para proteger o fogo
nos altares e as crianças adoptaram a nudez.
As termiteiras deixaram de existir e as formigas aladas
perderam as asas. Os pés dos mais velhos fenderam-se em
chagas e as mamas das virgens, mal eram tocadas,
colavam-se aos dedos como cinza húmida. Os lábios dos
sexos das mulheres paridas inchavam carnudos de uma
carne branca e os ventres pendiam como fruta mole.
Naquele ano a chuva foi excessiva
e os horizontes deixaram de existir.

Choveu por muito tempo até os cães perderam todo o pêlo
e as cabeleiras se destacarem como algas podres. O rei do
Jau ficou colado ao trono e ao boi sagrado cresceram-lhe
os olhos, que depois cegaram. As sementes grelaram nos
celeiros e essa semente assim era servida aos homens e
daí lhes ocorreu um tal vigor que os seus pénis cresceram
desmedidos e os homens vacilaram, tendo-os nas mãos e
mudos de fascínio.

A chuva choveu tanto que as serpentes saíram dos
buracos e vieram alongar-se ao pé dos paus, mantendo
com esforço as cabeças erguidas. Nas terrinas do leite
vicejaram musgos e o leite das vacas alterou-se em soro, a
coalhar na urina. Naquele ano a chuva choveu tanto que
até nos areais cresceram talos e as enxurradas
produziram peixe e até o ferro se lavou sozinho e os
diamantes vieram rebolar nas pedras concavadas de moer
farinha. As próprias aves morreram quase todas e apenas
se salvaram as de penas brancas, que a distância atraiu,
depois comeu.
E aquela chuva aproveitou aos fósseis e houve minerais
que se animaram e até pedras comuns a transmudar-se em carne.

Naquele ano a chuva choveu tanto que a memória perdeu
todo o sentido. As gargantas entupiram-se de limos
e as testas que os velhos pousavam nas mãos fundiam-se aos dedos
e os braços às pernas e os gestos de graça fundiam os
corpos e as jovens crianças ficavam coladas ao peito das mães.
Só as bocas teimavam em manter-se abertas e quando
mais tarde a chuva parou, das bocas saíram grossas
aves negras que abalaram logo daquelas paragens. E a
seca voltou e o mundo secou. A carne antiga a dar-se
agora em terra, os fósseis em pedra e as ramas em húmus.
E os passos poliram pouco a pouco as formas.

Naquele ano a chuva choveu tanto
que a memória nunca mais teve sentido.

Ruy Duarte de Carvalho (poeta angolano)
A identidade



a identidade
ou

o voo esquivo
de pássaros nocturnos
em torno da lua

identidade
é cor
de burro fugindo.


Arlindo Barbeitos (poeta angolano)
A alma é como a lavra




A alma é como a lavra.
Quando as nossas mãos voltam a desfiar
O milho amarelo de ouro?
Que outras mãos que as nossas semeiam
O medo e o silêncio da morte?
Porquê este frio? Porquê tão longa a noite?
Como se faz o mundo? Quando começa o mundo?


Maria Alexandre Dáskalos (poetisa angolana)



Fio


No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.

Tu não vês o jogo perdendo-se
como as palavras de uma canção.

Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrelas na mão...

— para que serve o fio trémulo
em que rola o meu coração?

Cecília Meireles (poetisa brasileira)
Botas de Borracha



Dentro das tuas botas de borracha
fizeram teus pés calo e ferida,
mas também desenharam o mapa da tua terra Timor
e sentiram o formigueiro que precede o combate.

Não importa por isso se às vezes quiseste que as botas
tivessem asas, quando o coração disparava
e rezavas alto para que as munições continuassem
a assobiar-te aos ouvidos
em vez de te perfurarem o corpo magro.

E agora quando descansas oculto no matagal sorris
pensando que um dia irás oferecer as botas
a um museu.


Afonso Busa Metan (poeta timorense)
Infância



as crianças brincam na praia dos seus pensamentos
e banham-se no mar dos seus longos sonhos

a praia e o mar das crianças não têm fronteiras

e por isso todas as praias são iluminadas
e todos os mares têm manchas verdes

mas muitas vezes as crianças crescem
sem voltar à praia e sem voltar ao mar

Fernando Sylvan (poeta timorense)



Sobre as Horas



Ver-te dourava
o corpo da pupila.
A sombra. E as estátuas
por onde ver-te vinha
animal. E parava
redondo na retina.

O grande movimento era-nos sempre
margem de olhar um rio.
Ia-se-nos perdendo
ver algum navio
entrar nas águas de tê-lo
alguma vez ouvido.
Ou, se quiserem, havia o movimento.
E, à volta dele, o rio
estava perto de sermos
lugar. Ponto de frio
de onde os amantes sempre
partiram esquecidos.

Fernando Echevarría (poeta timorense)

5.13.2009

Sinfonia




A melodia crepitante das palmeiras
lambidas pelo furor duma queimada

Cor
estertor
angústia

E a música dos homens
lambidos pelo fogo das batalhas inglórias

Sorrisos
dor
angústia

E a luta gloriosa do povo

A música
que a minha alma sente


Agostinho Neto (poeta angolano)

5.12.2009

A rua respira


a rua respira de um amarelo minúsculo,
nos dedos a poesia gasta-se.
com algemas nasceu uma rosa corroendo a paisagem,
e é Setembro.
chegaram os sopros pungentes da iluminação.

certamente vestirei um acto inútil,
perderei do sentido a noção.

ouve-me,
ainda que as esferas no meu sangue se esbarrem, o vento
continua a empurrar as aves
que conduzem trenós, e a ternura é veloz.


Maria Gomes
Tríptico


I

"Transforma-se o amador na coisa amada" com seu
feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
silêncio da sua última vida.
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas.

Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas.
Transforma-se em noite extintora.
Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.

Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça
a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito do amador.
Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,
dá-lhe o grito dele.
E o amador e a coisa amada são um único grito
anterior de amor.

E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
de amador. E ela é batida, e bate-lhe
com o seu espírito de amada.
Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
do amor. Enquanto em cima
o silêncio do amador e da amada alimentam
o imprevisto silêncio do mundo
e do amor


Herberto Helder

5.11.2009

Contratados




Vinham ao longe
aglutinados
baforada de sussurros no horizonte
ressonâncias fundas de uma força
determinados

Uma força que é pendor de gemidos
de levas passadas
que arrastaram pobres

Vinham ao longe
em conversas vagas
na tarde baixa resumando dobres


Arnaldo Santos (poeta angolano)
Timor



Suave, doce, lânguida ilha
Aberta como flor na distância do mar,
Prolonga um pouco a virginal beleza,
Atende, espera!… minha alma suspensa
Em ti respira - corola do mar.
Verdura incandescente, maravilha
Líquida, ritmo, manancial.
A mim vieram melodias infinitas
Das ondas.
E as árvores exaltaram;
Surgiram montanhas de alegria total.
Meus lábios cantaram silêncios sonoros,
Manhãs de sabor pleno e de prazer eterno;
Minha alma atravessava o espaço imenso
Envolta num sol de lágrimas.
Ah! termo
Sonho de um caminho amado.


Ruy Cinatti (poeta timorense)

5.10.2009

O silêncio



O silêncio arredonda-se em domingo,
E, dentro dele, um arrepio alarga
sua prévia suspeita de recinto

Fernando Echevarría (poeta timorense)

5.06.2009

Colono

à memória de João Luís do Amaral

Quase perdida a memória das frias águas
escorrendo pelas encostas
bíblico fitavas esta chuva
estes ventos
estas árvores de grandes sombras.

Os caminhos da juventude entre Douro e Minho
a casa velha a quinta dos invernos
— tudo palavras de um livro arrumado na estante
que (para o manter vivo)
de longe em longe passava pelos olhos.

Pão levedado de erros e grandezas
aos dentes da vida te deste inteiro
enquanto a cidade nascia sob os teus pés
crescia
e as raízes da rotina milímetro por milímetro
se iam afundando.

Partiste
sem te despedires
para a licença ilimitada mais definitiva
mas entre Chamanculo e Xipamanine
o chão que pisaste
retém teu nome para sempre.

Fonseca Amaral
Moçambique