9.30.2010

Capela



Vão escuros nas lenhas onde acendem
os olhos mirrados na carne

voltejam do terror em ladaínha
enfermos nas bocas negras,

amam como cães, bentos pela água
calvos ao desgosto do pai,

mostram os buracos do corpo
ajoelham erectos nas chagas,

fazem na escuridão o ofício de deus,

apagam a luz dos postigos
cobrem as vísceras de incêndio,

pedem os dias a deus.



Alexandre Nave

As palavras de adeus


A realidade é maior que a verdade meu amor
somos mais do que o sol e do que o mar e
em nenhuma metáfora cabemos
mesmo quando dizemos eu
sou a música tu és o luar

com cadeias de ferro nos unimos
em nosso nome jurámos
pelas casas dos frutos bebemos
de mel silvestre nos alimentámos

mas de fora sempre ficou
algo que nos próprios sentimentos já não coube
e um gosto que indicou algo
que a boca já dizer não soube

entre as coisas as palavras e a sua mudez
paira a irrealidade de
que nos fizemos
nem uma só vez foram verdade as
palavras de adeus que nos dissemos

Fernão de Magalhães Gonçalves

Dá-me o puro cansaço após o amor



Dá-me o puro cansaço após o amor
à fresca sombra da tarde.
Agora que é ido o desejo, concede-te
este breve instante de paz e repousa.

Toda a minha vida possui isto:
uma boca a brilhar sozinha em meu peito.

Mas a carne é sonho ao tocar-se nela,
ao senti-la fremente em nossos lábios indefesos;
a carne é já cinza, esquecimento,
frio desolador que se anuncia.

Porém, vê como arde a tua boca
negando o vazio que sempre perto nos aguarda;
vê como arde o meu peito
com um resplendor que por ti jamais se apaga.

“Porquê beijar teus lábios se se sabe que a morte
está próxima, se se sabe que amar é esquecer
a vida apenas, fechar os olhos ao sombrio
presente para os abrir aos radiosos limites
de um corpo?”

Porquê respirar esta luz carnal frente ao curso
de um poderoso rio que cruelmente nos ignora
mas onde de súbito uma gota de orvalho esplende
como uma lágrima nossa?

Não, também eu não quero acreditar numa verdade
que nos livros se lê como uma água,
também eu não posso aceitar essa futura agonia
que reduz a um último estertor
a cálida juventude de um amado corpo.

Quero crer, oh sim, crer que a luz que das tuas mãos
se evola subsiste à melodia triste dessa água,
passageira, quero acreditar no talismã vermelho
que pulsa feliz
em meu peito enamorado só porque o teu nome
fulgura nele como uma estrela obstinada,
nesses olhos que não são feridas mas apenas
frescas margens,
que me devolvem, cada dia, incólume,
o azul das ondas
que contra mim, mortais, embatem.


Gonçalo Salvado

Secaram os rios nos teus braços


secaram os rios nos teus braços

aguardo que me anuncies o verão
o novo caminho do teu corpo
e das fontes

morro de sede

como pássaro que anoitece
carregado de memória
suspeito
dos teus olhos amargos

detenho-me a roer os dedos
e adivinho

as aves mortas
como despojos do tempo

e o vento não lhes toca


Lourenço de Carvalho
Moçambique

9.29.2010

Terra de Canaã



Não, piloto Israelita.
Inútil procurares nos incêndios de Beirute
e nos inocentes corpos mutilados pelos estilhaços ardentes
as belas palavras do Cântico dos Cânticos.

E voa mais baixo.
Desce velozmente mais baixo no teu caça-bombardeiro.
Voa mais baixo. Desce ainda mais baixo piloto hebreu.
Desce até Eichman. Voa até ao fundo dos ascos.
Acelera até os motores e as bombas de fósforo
contigo oscularem sofregamente o chão sagrado.

Foi para este holocausto que sobreviveste
ao teu genocídio nos tempos da Nazilandia?
Achas que é esta a tua ambicionada Terra de Canaã?
Tu achas que assim ganhas a paz na Terra Prometida?

José Craveirinha
Moçambique

Não digas nada!


Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender -
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem

Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.

Fernando Pessoa

Ela no meu olhar


Os meus olhos são Índias de segredos.
É Portugal seu Corpo esguio e brando.
E as cinco quinas, seus compridos dedos
Em suas mãos, bandeiras tremulando.

Seus gestos lembram lanças. E ela passa...
Seu perfil de princesa faz lembrar
Batalhas que travaram ao luar,
Epopeia-marfim da minha Raça.

O seu olhar é tão doente e triste
Que me parece bem que não existe
Maior mistério do que o de prendê-lo.

Nos meus sentidos vive o seu sentir
E, às vezes, quando chora, põe-se a ouvir
Seu coração, velhinho do Restelo.


Alfredo Guisado

O Ladrão de Versos



Uma gargalhada do meu filho
rouba-me um verso. Era,
se não erro, um verso largo,
enxuto e musical. Era bom
e certeiro, acreditem esse verso
arisco e difícil, que se soltara
dentro de mim. Mas meu filho
riu e o verso despenhou-se no cristal
ingénuo e fresco desse riso. Meu Deus,
troco todos os meus versos
mais perfeitos pelo riso antigo
e verdadeiro de meu filho.

Rui Knopfli
Moçambique

9.28.2010

Segredo


Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projetou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração

Fernando Pinto do Amaral

Uma ilusão levanta-se de um escombro




Uma ilusão levanta-se de um escombro mas não se apanha
o poeta que por ela mais a ensaiou num percurso e palco
que nunca fora estranho a Deus. Um cágado não pode passar
limpo e com estilo pela cinza porque não viu
como mais à frente se salvou uma lavra. Salva-se algo
como a primeira escolha
apesar de todos não terem para onde se virar senão
para a fé da palavra que nos pede
um momento
de vaidade.

Adriano Botelho
Angola

E eu partirei



E eu partirei.
No caminho o sabor de nós dois
se extinguira, as mãos, iniciadas na arte de submergir
por entre extensas planícies azuis, irão
quedar deflagradas em mil e um pedaços.
A dor intensa,
a lágrima espinhosa,
o rosto que se afasta,
o peito que mingua...sou eu!
E eu partirei,
levando comigo somente os resquícios
dos beijos havidos,
das manhãs todas que a sede transformou-te, assim como se transformaram esses rios de caminhos incertos
e que seguem a eterna busca do infinito mar.
O silencio inquietante,
o vazio profundo,
a voz que de longe
desperta a tua atenção...sou eu!
E eu partirei, mesmo que me falte o corpo, mesmo que não me bastem os passos, pois sei que em algum lugar, em algum momento, lá estarás tu, esperando por mim, e sorrindo dirás: — Já estava cansada de te esperar!
E nesse instante,
um sorriso em pérola,
uma lágrima em flecha,
uma flor apenas,
será bastante para te mostrar a minha felicidade.

Eusébio Sanjane

Sonhando...



É noite pura e linda. Abro a minha janela
E olho suspirando o infinito céu,
Fico a sonhar de leve em muita coisa bela
Fico a pensar em ti e neste amor que é teu!

D'olhos fechados sonho. A noite é uma elegia
Cantando brandamente um sonho todo d'alma
E enquanto a lua branca o linho bom desfia
Eu sinto almas passar na noite linda e calma.

Lá vem a tua agora... Numa carreira louca
Tão perto que passou, tão perto à minha boca
Nessa carreira doida, estranha e caprichosa

Que a minh'alma cativa estremece, esvoaça
Para seguir a tua, como a folha de rosa
Segue a brisa que a beija... e a tua alma passa!...

Florbela Espanca

9.27.2010

Tango



O teu sexo na minha boca
é a flor que arde: a sua chama
explode táctil abre ruínas onde antes
cidades se erguiam habitadas.

Não tem medida a forma
com que as pernas
pontas abertas de uma estrela
se atiram no vazio deste quarto.

O teu sexo na minha boca
é um canto. Sonoros seus líquidos
abrem-me na língua um sulco fundo
que traz a luz que espasma na tua boca

noite a querer fechar-se lá por dentro.
Mas nem isso me aquieta
nem a sombra que cai nem esse grito
chegam para calar o meu desvairo.

O teu sexo na minha boca
é o meu sexo: o seu cheiro
acre que inundando
meu corpo o abre a todo o seu espanto.


Bernardo Pinto de Almeida

9.26.2010

Retrato do pronome possessivo

Jeu de Voiles Art Print

O meu é teu. O teu é meu
e o nosso é nosso quando posso
dizer que um dente nos cresceu
roendo o mal até ao osso.

O teu é nosso. O nosso é teu.
O nosso é meu. O meu é nosso
e tudo o mais que aconteceu
é uma amêndoa sem caroço.

Dizem que sou. Dizem que faço
que tenho braços e pescoço
- que é da cabeça que desfaço
que é dos poemas que eu não ouço?

O meu é teu. O teu é meu
e o nosso,nosso quando posso
e sem o ver galgar o fosso
e sem o ver galgar o fosso.

Ary dos Santos

Primer brinquede de Tói



A criança ficou bêbada de chuvasol
E apostou
Que as mãos
E as ilhas
Voariam gémeas
Assim aves de espaço & tempo

E diz a criança
“sob o olho da terra arável"
Sou a semente
Por onde sonha
A cabeça do arqupélago

Corsino Fortes
Cabo Verde

Proposição



Ano a ano
crânio a crânio
Rostos contornam
o olho da ilha
Com poços de pedra
abertos
no olho da cabra

E membros de terra
Explodem
Na boca das ruas
Estátua de pão s6
Estátuas de pão sol

Ano a ano
crânio a crânio
Tambores rompem
a promessa da terra
Com pedras
Devolvendo às bocas
As suas veias
De muitos remos

Corsino Fortes
Cabo Verde

9.25.2010

Carreira de Gaza



Escusado fazer pontaria.
Chusmas de rajadas acertam sempre.

Povo armado de maternitude e velhice
esgota a lotação das carreiras de Gaza
rumo à saudade de onde saiu.

Objectivo estratégico de maternitude
machibombo da carreira de Gaza
atingido em cheio calcinou.

A mãe que dava o peito ao bebé de três meses
foi removida assim mesmo.
José Craveirinha
Moçambique

9.24.2010

Ovelhas e Bibliotecas: Sofrimentos


É um certo tom que eu não sei derivar
como devia: uma transparência, um esbatimento,
a abstracção das coisas.
A ovelha a meio do campo, vista deste combóio,
sofre só dessa teITivel solidez: ovelha

O mesmo se passa com a minha cozinha, ou
um livro, ou uma emoção:
um assado bem feito pode superar
qualquer capítulo bem anotado,
o cheiro das cebolas é às vezes
mais transcendente
do que tantos caracteres
a que f'aIta sal

Neste momento, está atrasado o combóio,
um inter-regional que pára nas estações todas,
mas há sol, e assim fico a conhecer
os apeadeiros portugueses, e talvez me sirvam
de poema mais tarde, e tenho o privilégio
de me comover com os seus tons
floridos

Agora a linha é mais simples e estreita,
correndo, paralela, à Estrada Nacional,
uma linha de frase básica,
só com os elementos principais.
Mas, às vezes, a ovelha que a atravessa, secante,
dá-lhe uma certa vírgula romântica

É num tom desses que eu me sei mover.:
no intermédio cruzamento
dos portões do real,
nas despensas do mundo

Essas em que guardo o resto dos temperos,
um ou outro feitiço
no Livro de Receitas -

Ana luísa Amaral

O meu amor



O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca
Quando me beija a boca
A minha pele inteira fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minhalma se sentir beijada, ai

O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos
Viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo
Ri do meu umbigo
E me crava os dentes, ai

Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz

O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me deixar maluca
Quando me roça a nuca
E quase me machuca com a barba malfeita
E de pousar as coxas entre as minhas coxas
Quando ele se deita, ai

O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios
De me beijar os seios
Me beijar o ventre
E me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo
Como se o meu corpo fosse a sua casa, ai

Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz

Chico Buarque
Brasil

9.23.2010

Acto ou qualquer outra Coisa


Acto ou qualquer outra coisa. Eu sei, aquela mulher
tão tranquila
vendo da janela do quarto o porto
vendo dos barcos o fumo rente aos mastros
eu sei

essa mulher bem podia ter o nome quando
por detrás da janela observa
outras coisas que não são barcos e mastros.

Talvez os homenzinhos de azul despertem seus desejos
ou só o azul desbotado, mas não
não nessa janela nesse porto de cidade que não sei
e ela sabe

envolta no vestido, ruivo o cabelo,
envolta nas madeiras da portada.
O chão deve ranger sob os seus pés.

João Miguel Fernandes Jorge

9.21.2010

Neologismo



Nascem sons
Neologismo de vida nova
Melodia vaga
Quase me esmaga a carne
Na mesma veracidade
De amar-te incessantemente

Tânia Tomé
Moçambique



9.20.2010

Aceitarás o amor como eu o encaro ?...



Aceitarás o amor como eu o encaro ?...
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza... a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.


Mário de Andrade
Brasil

9.19.2010

No material o andor das paredes




todos os dias estas velas traziam alegóricas cidades.
mesma surpresa confidente pé
o céu todo dia sentado.
na terra o material das paredes empurra deitado
o meio-dia vestido inesquecível encantamento.
os olhos adiante lúcia na irrigação hoje primeiro dia
eram falas no sétimo mês inquieto discurso dentro dele
o céu todo dia de pé.
a terra material das paredes declarativos os espelhos
vidro fundo o sinal próximo acinzentado andor
este lugar se nada ocupa só dissolve
o possível sorriso na imutabilidade do tempo

Abreu Paxe
Angola

Psiquiatria II




Todos me acham que sofro de miséria
faço de cada história um reboliço.
Mas devagar essa cicatriz banal eu escrevo;
esse ardil de loucos é um poemário;
um documento daquelas minhas dores.
Tudo vai mal, dizem. Tudo vai !
vai a raiva tão simples como fazer perguntas;
vai de passada qualquer maluco palpitando
[muita gente;
e vão outros palpitando os relógios
[automáticos:
...tic-tac tic-tac tic-tac...
Os tique-taques nascem das nossas bocas.
Bocas dissolvidas. Noites volémicas..
Os sentidos moídos na rua dos atritos.

João Tala
Angola

9.18.2010

Science-fiction I



Talvez o nosso mundo se convexe
Na matriz positiva doutra esfera.

Talvez no interspaço que medeia
Se permutem secretas migrações.

Talvez a cotovia, quando sobe,
Outros ninhos procure, ou outro sol.

Talvez a cerva branca do meu sonho
Do côncavo rebanho se perdesse.

Talvez do eco dum distante canto
Nascesse a poesia que fazemos.

Talvez só amor seja o que temos,
Talvez a nossa coroa, o nosso manto.

José Saramago

9.16.2010

Balada da flor de espuma



Descalça vai pro mercado
Don’ Ana pelas barrocas
vai formosa e vai segura...

Com quatro notas de cem,
em alegre sinecura
leva na boca o refrém
duma canção de ternura.
Vai formosa, e tão segura
Don’ Ana pelas barrocas...

Don’ Ana foi ao mercado,
foi ao mercado do Prenda
com quatro notas de cem
e com uma fome tremenda!
Com seu passinho estugado,
descalça pelas barrocas,
foi de quitanda em quitanda
Don’ Ana pelo mercado,
depressa, como quem anda
a cogitar no almoço.
Pelo mercado do Prenda,
foi num alegre alvoroço
com quatro notas de cem
florindo-lhe a mão pequena.

Mas de quitanda em quitanda.
saltando daqui para além
– com que surpresa, coitada!
com quatro notas de cem
Don’ Ana não comprou nada!

Cada vez mais lentamente,
foi de quitanda em quitanda
olhando p’ra toda a gente.
E as quatro notas de cem,
quatro pétalas de espuma
como uma coisa indecente,
como flor de frustração,
foram murchando uma a uma...

Descalça pelas barrocas,
Don’ Ana voltou p’ra casa
devagar, como quem chora.
E as quatro notas de cem
que Don’ Ana deitou fora
com o desgosto de as ter,
cantam ainda o refrém
numa vozinha cansada:

“mal-me-quer
bem-me-quer,
muito-pouco,
ou nada...”

Henrique Abranches (Angola)

9.15.2010

Voo


Entraste na casa do meu corpo,
desarrumaste as salas todas
e já não sei quem sou, onde estou.
O amor sabe. O amor é um pássaro cego
que nunca se perde no seu voo.


Casimiro de Brito

O sol rompeu


Tu choravas e eu ia apagando
com os meus beijos os rastos das tuas lágrimas
- riscos na areia mole e quente do teu rosto.
Choravas como quem se procura.
E eu descobria mundos, inventava nomes,
enquanto ia espremendo com as mãos
o meu sangue todo no teu sangue.
Não sei se o mundo existia e nós
existíamos realmente.
Sei que tudo estava suspenso,
esperando não sei que grave acontecimento,
e que milhares de insectos paravam e
zumbiam nos meus sentidos.
Só a minha boca era uma abelha inquieta
percorrendo e picando o teu corpo de beijos.
Depois só dei pela manhã,
a manhã atrevida,
entrando devagar, muito devagar e
acordando-me.
Desviei os meus olhos para ti:
ao longo do teu corpo morriam as estrelas.
A noite partira. E, lentamente,
o sol rompeu no céu da tua boca.


Albano Martins

Dentro de Mim



Não sei cantar,
Não sei olhar...
Só sei dizer o que sinto,
Aqui... dentro!
Viajo por labirintos
Que são a minha alma.
Tento encontrar um destino,
Mas falta-me a calma,
Para o saber procurar.
Para o saber encontrar.
Nem tudo o que luz
São estrelas ao luar!
Não sei cantar,
Não sei falar...
Só sei olhar o que sinto,
Aqui... dentro!
Estranha forma de ser!
Escrever sem entender, o quê?
Poemas não são, nem prosas,
Versos, nem pensar... p’ra quê?
Falta-me a coragem,
Para saber procurar.
Para saber encontrar.
Nem tudo o que luz
São raios de ouro a brilhar!
Não sei cantar,
Não sei gostar...
Só sei mostrar o que sinto,
Aqui... dentro!
Nem sequer precisam de entender,
Nem eu faço questão.
Se tudo o que escrevo fosse água...
Já não tinha coração.
Já a alguém se teria lembrado...
De o magoar,
De o amachucar!
Pois nem tudo o que luz
É translúcida água a cantar!


Maria José Figueiredo

As velhas tias organizam velórios




As velhas tias organizam velórios
e com o pêndulo do ocaso

invertem as rotas dos barcos
saídos do cais ao fim da tarde.

Ecos que já não lutam com ventos perigosos
de aromas marinhos
anseiam chegar à ilha para ver os pássaros
e
preguiçar na promessa de uma ilusão cumprida
Ao fim da tarde...

Maria Alexandre Dáskalos
Angola

O anel de Corina



Enquanto espera a hora combinada
De o remeter com flores a Corina,
Ovídio oscúla o anel que lhe destina
E em que uma gema fulge bem gravada.

— « Como eu te invejo, ó prenda afortunada !
« Com ela vais dormir, mimosa e fina,
« Com ela hás-de banhar-te na piscina
« Donde sairá, qual Vénus, orvalhada,

« O dorso e o seio lhe verás de rosas,
« E selarás as cartas deliciosas
« Com que em minh'alma alento e esp'rança verte...

« E temendo (suprema f'licidade!)
« Que a cera adira à pedra, ai! então há-de
« Com a ponta da língua humedecer-te! »

Eugénio de Castro

Doce Certeza



Por essa vida fora hás-de adorar
Lindas mulheres, talvez; em ânsia louca,
Em infinito anseio hás-de beijar
Estrelas d'oiro fulgindo em muita boca!

Hás-de guardar em cofre perfumado
Cabelos d'oiro e risos de mulher,
Muito beijo d'amor apaixonado;
E não te lembrarás de mim sequer!...

Hás-de tecer uns sonhos delicados...
Hão de por muitos olhos magoados,
Os teus olhos de luz andar imersos!

Mas nunca encontrarás p' la vida fora,
Amor assim como este amor que chora
Neste beijo d'amor que são meus versos!

Florbela Espanca

9.14.2010

Os versos que te dou



Ouve estes versos que te dou, eu
os fiz hoje que sinto o coração contente
enquanto teu amor for meu somente,
eu farei versos...e serei feliz...

E hei de faze-los pela vida afora,
versos de sonho e de amor, e hei depois
relembrar o passado de nós dois...
esse passado que começa agora...

Estes versos repletos de ternura são
versos meus, mas que são teus, também...
Sozinha, hás de escuta-los sem ninguém que
possa perturbar vossa ventura...

Quando o tempo branquear os teus cabelos
hás de um dia mais tarde, revive-los nas
lembranças que a vida não desfez...

E ao lê-los...com saudade em tua dor...
hás de rever, chorando, o nosso amor,
hás de lembrar, também, de quem os fez...

Se nesse tempo eu já tiver partido e
outros versos quiseres, teu pedido deixa
ao lado da cruz para onde eu vou...

Quando lá novamente, então tu fores,
pode colher do chão todas as flores, pois
são os versos de amor que ainda te dou.


JG de Araújo Jorge
Brasil

9.13.2010

Anjo Dialógico




Me alimento dos claros instrumentos
da água venal das estações
tectos de zinco calcinados
onde a chuva de Setembro polariza máscaras
de um reino mitigado por erosões de tristeza, pó & consternação
Alguns sulcos de emoção asseguram-me este lugar
de anjo dialógico num país de náufragos
engenhos de olhar e ouvidos arrancados
pelo refinamento de submarinos pássaros
São estas palavras a poeira
que a língua bebe à boca do vento
a cicatriz do gesto onde se exila
a escrita de virilhas ao sol

José Luís Mendonça
Angola

Saudade é querer viver o já vivido



Saudade é querer viver o já vivido,
Querer amar e ter amado já…
Sentindo o coração anoitecido,
Querer beijar a luz que o sol lhe dá.

Saudade é ver fugir o bem perdido,
Não podendo ir com ele onde ele vá;
Ai, saudade afinal é ter nascido
Na certeza que a vida acabará!

Horizontes sem fim, novas paisagens…
Saudade é vago espelho onde as imagens
Têm vida para além da realidade.

Saudade é tudo enfim que me rodeia;
Um relevo de passos pela areia;
A morte, a vida, o amor, tudo é saudade…


Anrique Paço d'Arcos

Hora do exílio


Repara ainda nos seus seios dormidos
que se fazem névoa ao tocar das suas mãos.
Repara ainda nos seus olhos húmidos
que se afastam como o fim duma canção.

Repara nos seus dedos que enlançam
uma última flor de solidão,
no abandono dos seus passos
que passeiam, uma folha caída pelo chão.

Repara no cansaço triste dos seus braços
na ternura dos seus cabelos lassos
no sorriso da sua deserção.

E se a coragem te povoar ainda os sonhos baços
que nunca o teu amor, amor, foi tanto
diz-me então.

Fernando António Almeida

9.12.2010

Amnésia



Posso pedir, em vão, a luz de mil estrelas:
apenas obtenho este desenho pardo
que a lâmpada de vinte e cinco velas
estende no meu quarto.

Posso pedir, em vão, a melodia, a cor
e uma satisfação imediata e firme:
(a lúbrica face do despertador
é quem me prende e oprime).

E peço, em vão, uma palavra exata,
uma fórmula sonora que resuma
este desespero de não esperar nada,
esta esperança real em coisa alguma.

E nada consigo, por muito que peça!
E tamanha ambição de nada vale!
Que eu fui deusa e tive uma amnésia,
esqueci quem era e acordei mortal.

Fernanda Botelho

9.11.2010

Amor é um fogo que arde sem se ver




Amor é um fogo que arde sem se ver
É poder sonhar sempre acordado;
É ter em minha alma, aconchegado,
Teu corpo e a essência de teu ser.

É ter-te ainda para além de ter,
Sem saber onde começo ou acabo;
E tu me teres e eu em mim te trago,
E não há dor que mate este prazer.

É ter a tua mão dentro da minha,
É onde a alma tu foste pôr
Para que ao meu coração te leve.

É este incêndio que em mim caminha,
Arde nas veias e no teu rubor,
É ser eterno ainda que breve.


António Simões

Acordei esta noite


Acordei esta noite
com o gotejar da chuva
monótono
sonolento.
Dormia comigo a saudade
e comigo acordou
amargando horas sem raízes
no tecer de angústias e desânimos.
Pura fantasia a textura dos sentimentos!
Os galos cantavam ao longe
no romper da madrugada
e a claridade incerta da janela
abria mansamente os meus olhos
intactos
molhados.
Ousei tocar a tua mão branca
sabendo que tocava o lado esquecido da vida.
Tinhas morrido.
Já na véspera o sabia
mas esqueceu-mo o dormir.
Fugi para a cidade
e vagueei pelas ruas adormecidas
até os galos calarem o seu cantar.
Por baixo de um céu de nuvens
levei meus passos para o lado do mar.
As ondas abriam-se nos rochedos negros
e eu não tive medo.
Deixei que as pernas me pesassem
ao longo da praia
em passos leves de areia fina.

Quando levas um seio ao vento
e me dás a beber campos e cidades
glorifico a pouca luz que ainda me resta.
Se os lobos se atravessam
no caminho para a tua cabana
o vento ergue-me nos ares
e o coração aprende a não ter medo de cair.
Descobridor de sonhos
de amanhãs que riem
e de estuários...
continuo a pintar o vento
ainda que nele te vás.


Adão Cruz

O encontro não teve lugar



O encontro não teve lugar
porque a girafa não encontrou
um vestido adequado
à solenidade do momento

Joaquim Falé
Moçambique

Acontecimento


Tu choravas e eu ia apagando
com os meus beijos os rastos das tuas lágrimas
– riscos na areia mole e quente do teu rosto.
Choravas como quem se procura.
E eu descobria mundos, inventava nomes,
enquanto ia espremendo com as mãos
o meu sangue todo no teu sangue.
*
Não sei se o mundo existia e nós existíamos realmente.
Sei que tudo estava suspenso,
esperando não sei que grave acontecimento,
e que milhares de insectos paravam e zumbiam nos
meus sentidos.
Só a minha boca era uma abelha inquieta
percorrendo e picando o teu corpo de beijos.
*
Depois só dei pela manhã,
a manhã atrevida
entrando devagar, muito devagar e acordando-me.
Desviei os meus olhos para ti :
ao longo do teu corpo morriam as estrelas.
A noite partira. E, lentamente,
o sol rompeu no céu da tua boca.

Albano Martins

Rimas, manhã e sem estereofonia



Não se me dava que daqui a bocado,
pela manhã, me telefonasses e,
ignorando-me a voz de sonho errado,
dissesses devagar "gosto de ti"

E me acordasse o toque de telefone:
relâmpago de som, eléctrico, ou
eu, como orfeu, ouvindo o gramofone
que eurídice, a velhaca, lhe deixou

Muito mais bom que orfeu seria a tua
voz a romãs (ou figos, ou amoras),
daqui a unha ínfima de lua,
ou seja, mais ou menos quatro horas

É que não se me dava, let alone
ter que estender a minha mão e com
ela pegar em ti ao telefone
e ouvir "gosto de ti", era bem bom

Mas esse sonho fica-se no meu
desejo a nada, e nem o telefone
me soa a teu futuro. Vem, Orfeu,
trá-la de volta...

Ou traz o gramofone -


Ana Luísa Amaral

A moral da história



Entretanto a vida constrói-se, é um facto.
O edifício ainda se não vê,
mas os alicerces ocultos estão sólidos
e profundos e operários silenciosos,
de rosto obscuro, deslizam neles
com uma eficiência anónima e implacável.

Gente ainda ignorada, sem importância
aparente, move com precisão a pá
e o tijolo. Gente que ignora certamente
estes versos mas sabe de toda a poesia
que há neles, porque a poesia está
implícita nos movimentos que traça.

Gente ainda sem nome aqui
e com que ninguém se importa,
mas que importa a toda a gente

Rui Knopfli
Moçambique

Da última ceia


Faltou Jesus nessa noite agoirenta

Embora as iguarias e demais apóstolos
Sem os trinta dinheiros e o beijo fatal
ninguém se atreveu a tocar no pão

Não se podia alimentar a lenda
sem as pupilas incandescentes
do tal judas o traidor

Judas bode expiatório
da sacrossanta impunidade
Judas
pólo de irrevogável inclemência
do ideário cristalizado

Judas será Judas
Quer ele queira quer não
e a essência das coisas dogmatizadas
deve aspergir sobre o medo inteiro
dos que aprenderam a soletrar assim

E há depois também as conveniências
dos que pintam
dos que vendem
dos que sobretudo compram
últimas ceias pelo mundo fora

Ah Judas traiu mais uma vez
eis o que sobra na mesa posta
não haverá ceia por esta noite
e Cristo apesar de Cristo e milagreiro
passará fome como um simples mortal

Como um desses milhões de famintos
que dão de comer a quem não tem fome

E assim chagados
ámen para todos os pacientes

Porque nós dizendo não
alimentaremos a revolução

Rui Nogar
Moçambique

Mulher


Mulher que escondes em teu corpo
a alma secreta das paisagens,
com o seu fluir de rios
e seus socalcos de pura dádiva e bondade.
Hoje, meu coração, talvez te revele
que não serás, como ela, passageira.
Qualquer coisa de ti perdurará
na verde folhagem destas árvores
que vegetalmente te observam
e tua música imitam.
Porque eu te amo és eterna,
vives para além da invalidez do tempo,
és pólen fecundante que o vento não sonega,
pétala de lume a perfumar a brisa desta tarde,
Primavera que de ti própria vi brotar.
E nos céus antes áridos entoam já suaves sinos
anunciando que todos os dias serão agora teus,
só porque os fizeste de seda para mim.


Gonçalo Salvado

9.10.2010

Sensual


Ainda sinto o teu corpo ao meu corpo colado;
nos lábios, a volúpia ardente do teu beijo;
no quarto a solidão, desnuda, ainda te vejo,
a olhar-me com olhar nervoso e apaixonado...

Partiste!... Mas no peito ainda sinto a ânsia e o latejo
daquele último abraço inquieto e demorado...
- Na quentura do espaço a transpirar pecado,
Ainda baila a figura estranha do desejo...

Não posso mais viver sem ter-te nos meus braços!
- Quando longe tu estás, minha alma se alvoroça
julgando ouvir no quarto o ruído dos teus passos...

Na lembrança revejo os momentos felizes,
e chego a acreditar que a minha carne moça
na tua carne moça até criou raízes!...


JG de Araújo Jorge
Brasil

Sobrevivo



Sobrevivo
assim
casa vazia
em vasto mundo.

E tu mais dócil
em teu fiel
e paciente inferno
de enormes estrelas.

Sono de morte
sou voo raso
adagio breve
salmo e nostalgia.

Aqui nascemos
e voltamos
mortos
na memória
doce espiral,
de um tão
escasso fulgor.

Ana Marques Gastão

Aforismo



Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.

Estávamos iguais
com duas diferenças:

Não era interrogada
e por descuido podiam pisá-la.

Mas aos dois intencionalmente
podiam pôr-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.

Noémia de Sousa

Viagem


O beijo da quilha
na boca da água
me vai trocando entre céu e mar,
o azul de outro azul,
enquanto
na funda transparência
sinto a vertigem
da minha própria origem
e nem sequer já sei
que olhos são os meus
e em que água
se naufraga minha alma

Se chorasse, agora,
o mar inteiro
me entraria pelos olhos

Mia Couto
Moçambique

Flor Lunar



Quando abraço
A minha doce e terna
Flor Lunar
Quando oiço a terna voz
Quando olho seus meigos olhos
E mergulho no seu oceânico
Mundo fantasioso
Todas as muralhas
Se diluem no meu coração
E sai de mim
O homem exilado
Esperançado
Num futuro melhor.

Delmar Maia Gonçalves