1.31.2011

Sítios africanos que persistem



A bandeira chamava pátria àquelas terras,
havia picadas vermelhas, verdes mangais,
macacos que saltavam das árvores
e a dor castanha dos imbondeiros.
A mosca sêca, uma ilha amarela,
pretas, savanas, missangas
e a sombra exígua de um palmar.
Sons de ferros quebrados,
o toque batuque no tambor do coiro,
e, sabendo a sal, a morabeza,
uma crioula de lábios quentes.
Sempre o ritmo dolente
das ondas que murmuram
e um claro sol decifrando
a longa sombra da terra
no crepúsculo sem fim.
O navio, riscando a planura das águas,
seu fumo divaga na distância,
enquanto rapinas negras nos recordam
das minas traiçoeiras, das emboscadas,
no corá de Mamadu, na gente calada.
Mas foi no emaranhado de Lisboa
que, um dia, naufragámos por acaso,
sem que ninguém salvasse nossa palavra.
Armados de cimento, logo ficámos
com as mãos cheias de nada
e as ruas pejadas de retornados.
Mas, nesta cidade que foi partida,
ainda há vibrações de pátria por fazer,
derrotas, saudade, trovas, revolta,
Pessoa passeando em sua aldeia,
mestre Agostinho e o poder dos sem poder,
num império mais santo, o do espírito,
onde, eleitos, serão apenas os meninos.
Há barcos que largam mar dentro
e sítios africanos que persistem,
o mar da Guiné, cinzento e denso,
uma candeia no cais, a dar-nos luz,
imensas coisas do passado:
cordas, amarras, lágrimas, guitarras,
pátria palavra, crescendo num abraço.


José Adelino Maltez

Poema de Amizade



Se eu fosse uma nuvem,
Branca,
Leve,
Iria com o vento,
Para junto de tua janela,
Para te convidar a um passeio,
Para te levar a um sítio belo,
Para veres o mar e sentires o seu cheiro,
Para veres os campos cobertos de verde,
E de flores lindas com muitas cores.
Se eu fosse nuvem,
Ensinar-te-ia a voar,
E a sentires a vida de outra forma,
Como aquelas aves migratórias,
Que buscam um lugar para viver,
Que partem rumo à aventura e ao sonho,
Apenas para se sentirem felizes,
Para poderem sobreviver.
Se fosse nuvem,
Eu me regozijaria por te mostrar,
Tanta coisa bonita,
Que fico com muita pena,
Por não me poder transformar.
Por ter que penar por te ver,
Vestida de alma às vezes sofrida,
Sem daqui nada poder fazer,
Senão dizer-te que sou tua Amiga.


Beatriz Barroso

1.30.2011

Laurentina xipamanensis ronga maxilar



Acontecem coisas indizíveis cada minuto.
Onde estava deus que não veio ver
o momento em que pariste o amanhecer
num riso enxuto?

E onde estava o dianho e onde estava S. João
O que é que a virgem estava a mirar?
Onde tinha o profeta a atenção
que não saiu antes a anunciar?

Raios parta a corte deste céu vão
anjos e tudo
Assim perderam a ocasião
de eternizar a emoção
do teu rir súbito e enxuto.

Grabato Dias

Os meus sentidos


Um dia vi Deus numa palavra 

e luminosa despontava, argila. 

E Deus vagueava tudo, aquietava

 as numinosas letras, quase em fila.

E depois se banhava nesta ilha 

de bosques e bilênios. Clareava 

as formigas noctâmbulas da fala. 

E nele os meus sentidos se nutriam.

Os meus sentidos eram coelhos ébrios

 na verdura de Deus entretecidos. 

A palavra empurrava o que era cego,

a palavra luzia nos sentidos. 

E Deus nas vistas do menino, roda 

e roda nos olhos da palavra.

Carlos Nejar
Brasil

Acordar tarde


tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva – e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos – e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais – nada a fazer

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia

Al Berto

A força de um amor



Não há nada nesta vida
Mais grande que o amor
Se Deus é tão grande
O amor ainda é maior
Maior que o mar e o Céu
Mas, entre todo esse amor
O meu ainda é maior

Amor tão grande
É aquele que é meu
Ele é a chave
Que abre-me o Céu
Amor tão grande
É aquele que me quer
Ai se o perder
A morte já chegou

Ó força de amor
Que me a abriu a minha asa em flor
Deixa-me ir alcançar o Céu
Para ir ver meu Deus
Para lhe pedir a semente
De amor como esse meu
Para dar a toda a gente
Para que todos conheçam o Céu


Eugénio Tavares
Cabo Verde

Breve



Breve
o botão que foste
e o pudor de sê-lo

Breve
o laço vermelho
dado no cabelo.

Breve
a flor que abriu
e o sol mudou.

Breve
tanto sonho findo
que a vida pisou.


João José Cochofel

Nunca sei



Aqui a vi os cabelos concertando;
ali, co a mão na face, tão fermosa;
aqui, falando alegre, ali cuidosa;
agora estando queda, agora andando.

Camões, «Quando o sol encoberto vai mostrando»



Às vezes sorris, às vezes gritas,
às vezes caminhas sossegada pela casa.
Às vezes acordas com o rosto no meu braço,
às vezes fere-me no sono o teu joelho.
Já te observei deitada à beira do mar,
contigo andei pela clareira das florestas,
pequei-te na mão e fomos ao cimo das montanhas.
A chorar estiveste deitada nos meus braços.

Nunca sei onde estás, onde tu foste,
nunca soube se conseguia inquietar-te.
Passam as estações por nós, tu envelheces.
Dos sítios onde estivemos ficou-me que recordação?
Um dia morrerás. E quem pode adivinhar
que por ser incapaz de entender o mistério
passei a minha vida a estudar os teus gestos?


João Camilo

Mpungu ia Ndongu


Desliza a história nos gestos virgens
do entardecer

e nos ventres-espaços
rasga o sol a palavra desflorada nas searas
pelos mgumba


Samuel de Sousa
Angola

Amor



Assim de espuma e sal teu corpo a navegar
num meio-dia a onda e sol liberto
na conseguida fúria de estar perto
dia após dia para lá do mar.

assim nossa conquista de criar
na incerteza o que fazemos certo
um sol todos os dias mais desperto
dia após dia para lá do mar.

assim na fúria de saber amar
palavras poucas de um viver inquieto
nas noites esquecidas de luar.

assim como uma onda sempre a transformar
o amanhã numa manhã de afecto
dia após dia para lá do mar.


Manuel Rui
Angola

1.29.2011

Calar


calar o que o tempo antes de tempo
nos quis dizer, em dias de calma
depois da chuva ouve-se o ribeiro

arrastar os segredos que cala
às próprias árvores caídas
que lhe sustentam o curso.

assim se move o pensamento à volta
da mesma ideia sem nunca dela
se apartar ou nunca nela dar entrada.

Guilherme Ismael
Moçambique

Os restos



De noite há movimentos para nada procurar:
moeda sobre o tampo numa rotação local,
faces sem saída, cinzas nos cinzeiros.
Vêm habitantes para um esplendor funesto
e a alma fica líquida, dobrada nos sifões,
sob as galerias, por bares subterrâneos.
Há séculos nocturnos em que as moedas giram
assim entre conversas e qualidades mortas.
Nada se procura quando não existe encontro
- e as cidades brilham nas zonas terminais,
às luzes amarelas. É preciso haver um mito
para esmerilar os restos, as areias, os pós de ouro.


Carlos Poças Falcão

História de uma ideia franzina



Na aurora de uma ideia que parte para a guerra
grisalha ainda o engano duma esperança fútil.
frágil segurança
como a prece inútil, que foi rezada em fátima.

e cresce o desengano
como um novo anátema,
guinada dolorosa
de um velho quisto.
apenas um curto momento
de piedade de nós mesmo.
apenas um momento a esmo,
chorando tudo isto...

e a bandeira a duas cores que flutua orgulho
caída na armadilha do tempo inexorável
desbota lentamente
enche-se de humores,
de pus e de aguadilha,
do veneno delicioso do tortulho,
e balança no alto do mastro imponente
uma dança velha e lamentável
como a marcha trôpega de um veterano.

no curso de uma ideia que voltou da guerra
e esperança empalidece,
cala-se o choro,
vai mirrando a prece.
fica apenas o sóbrio desengano
que não pontifica, não constrói
nem erra...


Henrique Abranches
Angola

1.28.2011

A arte de ser amada


Eu sou líquida mas recolhida
no íntimo estanho de uma jarra
e em tua boca um clavicórdio
quer recordar-me que sou ária

aérea vária porém sentada
perfil que os flamingos voaram.
Pelos canteiros eu conto os gerânios
de uns tantos anos que nos separam.

Teu amor de planta submarina
procura um húmido lugar.
Sabiamente preencho a piscina
que te dê o hábito de afogar.

Do que não viste a minha idade
te inquieta como a ciência
do mundo ser muito velho
três vezes por mim rodeado
sem saber da tua existência.

Pensas-me a ilha e me sitias
de violinos por todos os lados
e em tua pele o que eu respiro
é um ar de frutos sossegados.

Natália Correia

A uma criança



as longas mãos, cobertas de silêncios
e de esperas
acariciam agora, outras mãos,
mais pequenas e mais belas…
e desse contacto tão distante,
que ainda é saudade,
e é já promessa,
nasce a íntima certeza
de que o sangue do meu corpo
corre para o teu,
como uma herança…

estão presas as minhas mãos,
às tuas mãos, criança!
e sobre a ponte frágil
dos nossos dedos confundidos
como cadeias de hera,
se ergue dia a dia
a esperança desta dor
e desta espera…

Alda Lara
Angola

Um revoltado adormeceu



Um revoltado adormeceu
na praia
e o mar
acalmou

Joaquim Falé
Moçambique

A eternidade em que nos pertencemos


Teus beijos ainda despertam em meus lábios
Enquanto o sol escreve a história deste amanhecer
E todas as cores deixam-se colorir no arrebol
A beleza do alvorecer rima em perfeita harmonia
Com a poesia que compuseste em meu olhar
Quando o amor me ofereceu a ti
Rebrilhando o lume da minha entrega
Teu sorriso suspenso ainda acolhe o meu despertar
E me olhas como se desejasses fotografar
Cada gesto com que revelaste o meu corpo
Abrigado em sensações e emoções, pleno de ti
A saudade agora também me presenteia a ti
Enquanto a paisagem do real oculta-se do meu olhar
E nega a tua ausência, recompondo momentos
Volta-se a vida aos lugares que nos presenciaram
Teus olhos pedintes, ressuscitados em mim
A poesia do nosso encontro continua sendo declamada
Rimando os nossos sonhos, aclamando os nossos desejos
Desnudada pelas mais doces e sublimes lembranças
Porque foi na primavera das tuas mãos
Abertas em pétalas de carícias
Que me vicejaste com a fragrância do teu amor
Ainda me é nítido o suspirar do nosso último amanhecer
Quando entregamos todas as palavras ao silêncio
Cúmplices do inconfessável, debruçados em nossa geografia
Estrangeiros de qualquer outro mundo
Encerrados pelos gestos que nos esperavam
Unidos pela eternidade de nos pertencermos...

Fernanda Guimarães
Brasil

Criança



Tu ! Que a ninguém pediste para vir ao mundo.
Tu! Que és o fruto daquele grande amor!
Daquele amor que leigos e jurados testemunharam
Daquele amor fogoso, de muita mentira
Daquele amor selvagem
Daquela violência que marcou tua mãe para todo o sempre
Por tudo isso, criança
Muito amor e muita rejeição te marcam.
Então não vejo?
Vejo sim criança!
Vejo quando divagas com a manada à procura de pasto.
Chova, troveje ou debaixo do sol árido estás ali!
Vejo nas grandes escolas lá da cidade alta
Quando logo pela manhã, bem equipado, o carro te deixa à porta do colégio
Quando desces do Chapa e cuidadosamente atravessas as largas Avenidas
Quando te metes naquela modesta rua a caminho da escola
Quando com camisola e sapatilhas rotas lutas por vencer a pobreza
Quando passo por ti ali no passeio encostado à padaria com uma bacia
vendendo badjias
Quando com uma caixa de papelão repleta de quinquilharias interpelas a todos
Tentando ganhar qualquer coisinha.
Quando junto ao semáforo te aproximas de cada carro pedindo uma moeda
Ó criança,
Ergue a cabeça
Ergue a cabeça e grite bem alto pelos teus direitos
Grite e lute com todas as armas e forças, pois,
Criança! Tu és o nosso amanhã
O País conta contigo amanhã


Fátima Langa
Moçambique

1.27.2011

Tácteis outrora


tão de ti
esses dedos no zipper
e a curiosa geografia
de tua boca

e nos teus olhos
a janela
são vidros moídos
que gemem
corroídos também
além das braguilhas
são os adros
e a procissão de nós

(não digas a ninguém
que os Alpes
são deuses nevados)
soletrados ainda
de verbos arfantes
serás tu
por entre pernas

tuas mãos tantas
sequer as vejo

tácteis outrora...


Filinto Elísio
Cabo Verde

Mesmo o tímido gesto


Mesmo o tímido gesto que não ouso
mesmo o sorriso, solto da palavra
mesmo este som de mar
no búzio de esquecer-me
são invenções de estar
porque alheios os nomes e as datas
as regras e as linhas.

Minha é a ausência.
E a mão da noite à vezes
se a morte adeja
e me adivinha.

Rosa Lobato de Faria

A Bailarina




E então tu entras no poema
com as tuas mãos alongando
a ausência do teu corpo
esgueirado na margem
do meu espanto
e bato palmas.
Deixas-me entrar no teu palco
com o fito de te admirar apenas.
Aqui estou minha bailarina
nesta Andaluzia improvisada
sapateando uma noite de guitarras
e estas vozes entre palmas
que esvoaçam a minha solidão.
Vejo-te assim nos meus versos
tuas mãos africanas indianas árabes
tua comovente beleza
na cadência deste flamenco
nestas vozes ciganas tangendo-me
com as ocres cores de Sevilha
nos pátios da Ilha de Moçambique
onde tu bailas e voltas a bailar
e eu bato palmas de júbilo
no êxtase dos gestos
que acordam os sinais
que me lembram
a tua ausência.


Nelson Saúte
Moçambique

Voz e aroma


A brisa vaga no prado,
Perfume nem voz não tem;
Quem canta é o ramo agitado,
O aroma é da flor que vem.

A mim, tornem-me essas flores
Que uma a uma eu vi murchar,
Restituam-me os verdores
Aos ramos que eu vi secar

E em torrentes de harmonia
Minha alma se exalará,
Esta alma que muda e fria
Nem sabe se existe já.

Almeida Garrett

Agora mesmo



Está gente a morrer agora mesmo em qualquer lado
Está gente a morrer e nós também

Está gente a despedir-se sem saber que para
Sempre
Este som já passou Este gesto também
Ninguém se banha duas vezes no mesmo instante
Tu próprio te despedes de ti próprio
Não és o mesmo que escreveu o verso atrás
Já estás diferente neste verso e vais com ele

Os amantes agarram-se desesperadamente
Eis como se beijam e mordem e por vezes choram
Mais do que ninguém eles sabem que estão a
[despedir-se

A Terra gira e nós também A Terra morre e nós
Também
Não é possível parar o turbilhão
Há um ciclone invisível em cada instante
Os pássaros voam sobre a própria despedida
As folhas vão-se e nós
Também
Não é vento É movimento fluir do tempo amor e morte
Agora mesmo e para todo o sempre
Amen


Manuel Alegre

Passamos pelas coisas sem as ver



Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.

Eugénio de Andrade

Se o fogo das queimadas



se o fogo das queimadas
fosse a vida
a vida não valia o sacrifício
há muito que o sonho se perdera…

as queimadas devoram as anharas
e o fogo apaga-se com a morte.

no capim, que não espera por novembro
e pulsa verde
gritante à beira do caminho
é que está a vida.


Costa Andrade
Angola

1.26.2011

Psicoalteração do Rato



rói o rato a roupa
na corda ao fim da rua
e arrota

num ror de razão o rato
rouba arroz ao porto do povo
e roto troca o troco
por trigo trancando-se atrás
do rasto raro e fica rico o rato
e por um triz não é trazido
de rastos pela rua a trote
mas chega ao trono e trás!
Rato sem roldana trás!... catrapuz!
Sem ruga roga a quem ri
rato rói rato até à raiz

mais radical a ratazana tradicional
num golpe de rins reluz ao raiar
de um enorme sol de luz
e ao farejar o rumorejar do país
corre pr'o Rand
pela ração sem retalhos
e quando regressa rola ruela
à risca e acende o rastilho
e não se rala por quem se roa

o rato resignado recolhe a rede
e rema rompendo as rugas
do mar sem rumo
e aí sem renitência reina
sem rusga nem ratoeira
e não se rala o rato roedor
rói até rédea
rato recto faz do rito revolução

Guita Júnior (Guita Jr.)
Moçambique

1.25.2011

Requiem




1.

Solistício é o sol sozinho
sem interstícios
no horizonte liso


2.

quando no altar se ilumina
não tu mas eu viva
para quê invocar lugares comuns
para quê imaginar e porque não
que se morreu de amor


3.

o amor torna a morte mais difícil
a Primavera sem ti será possível?


4.

tua veia incendeia a madrugada
a sombra que desfere és tu ainda


Teresa Balté

Antes que venham as primeiras chuvas


Antes que venham as primeiras chuvas
acender
Amarelas flores entre os rochedos
E o céu se torne móvel de compridos pássaros
E todo o chão se cubra do verde novo
Do capim
Saberás pelo vento que chegaste ao fim.


José Eduardo Agualusa
Angola

Remorso


Lembro o seu vulto, esguio como espectro
Naquela esquina, pálido, encostado
Era um rapaz de camisola verde
Negra madeixa ao vento
Boina maruja ao lado

De mãos nos bolsos e de olhar distante
Jeito de marinheiro ou de soldado
Era um rapaz de camisola verde
Negra madeixa ao vento
Boina maruja ao lado

Quem o visse, ao passar, talvez não desse
Pelo seu ar de príncipe, exilado
Na esquina, ali, de camisola verde
Negra madeixa ao vento
Boina maruja ao lado

Perguntei-lhe quem era e ele me disse:
_ Sou do monte, Senhor, e seu criado.
_ Pobre rapaz de camisola verde
Negra madeixa ao vento
Boina maruja ao lado

Por que me assaltam turvos pensamentos?
Na minha frente esteve um condenado?
_ Vai-te, rapaz de camisola verde
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado!

Ouvindo-me, quedou-se, altivo, o moço
Indiferente à raiva do meu brado
E ali ficou, de camisola verde
Negra madeixa ao vento
Boina maruja ao lado

Ali ficou... E eu, cínico, deixei-o
Entregue à noite, aos homens, ao pecado
Ali ficou, de camisola verde
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado...

Soube eu, depois, ali se perdera
Esse que eu só pudera ter salvado
Ai! do rapaz de camisola verde
Negra madeixa ao vento
Boina maruja ao lado!

Pedro Homem de Mello

O cercado



De que cor era o meu cinto de missangas, mãe
feito pelas tuas mãos
e fios do teu cabelo
cortado na lua cheia
guardado do cacimbo
no cesto trançado das coisas da avó

Onde está a panela do provérbio, mãe
a das três pernas
e asa partida
que me deste antes das chuvas grandes
no dia do noivado

De que cor era a minha voz, mãe
quando anunciava a manhã junto à cascata
e descia devagarinho pelos dias

Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe
se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
p'ra lá do cercado
Ana Paula RibeiroTavares
Angola

Silepses


Ajustadas ao comprido as ripas
esfarelando-se devagarinho
por entre minuciosos
dedilhos de terra.

E
em melancólicas silepses
conspícuas gralhas versejam
extemporâneas férias
da Maria.
José Craveirinha
Moçambique

1.24.2011

Sempre um de nós



Sempre um de nós
foge. Sombria água
trépida e contínua
água em céu diverso
como diversa eu sou
chão sem flor.

Vã palavra, múltipla
palavra, longínqua
semente entre o arco
e a corda. Nada sara
em meu cego corpo
eu que imagem sou,
não alegoria.

Tremor antigo, árvore
sem fruto, nada resiste
nesta cidade sem casa
- só a garça chega em seu
liso voo porque o tempo
nunca é longo.

Ana Marques Gastão

O testamento do mundo



Porque daqui se levantará
todo o horizonte, nasces — a terra toda
em alfabetos, assombros,
degraus.
E se abrem os tesouros:
vertigem: as vísceras iluminadas.
Porque sou eu quem levanta das palavras o dizer
inscrevo nas fábulas o fogo,
o arco e a pedra, a seta envenenada
e o sangue — a sua carne
lacrimejante.
E nenhuma voz (rio adormecendo
a margem frágil) repetirá a voz
deste dizer, a sua caligrafia
do vôo
dirá a flecha,
da viagem, os caminhos.

Porque daqui se levantará
todo o horizonte, nasces - Terra
e nósmada
— Bosquímano.


Zeto Cunha Gonçalves
Angola

O búzio




Búzio
Porque tens dentro a voz do mar?
Sentes saudades dele?
Quando te encosto ao ouvido
ouço-o sempre a cantar
como uma ondinha distante
batendo na praia ao luar.


Lília da Fonseca
Angola

1.23.2011

Criei, não possuí.


Criei, não possuí.
Instante de infinitude, o que moldei na voz
respira. A firme casa do meu corpo se fez
pelo contraste, que só o contrário cria.
Não possuí,
denso ou raro,
pequeno até ao nada,
nenhum símbolo,
nenhum olhar de brasa,
nenhum odor colado à pele.
Pretendi a verdade, mas tudo se muda
pelos meus olhos e a fosca luz do que foi viver
só no amor se moveu. Morto o amor,
transforma-se a água.
Onde a noite não há e o dia não é,
esqueço as mudanças do tempo
e com meus ardis me defendo
do terror de mim.


Orlando Neves

Villa Dei Misteri


Tiro os óculos e recua o mundo:
torno à mais árdua intimidade.
Diónisos ou Penteus, antes do sangue
pesa já a vinha sobre as colinas
de Outubro.

As bodas místicas
do deus e da noviça, meu destino
branco, minha face nocturna,
não os preserva a ciência
dos três livros, nem figurariam,

por certo, na cinza dos restantes.
Sei, entre névoas e azul, de uma
biblioteca deserta, cujas estantes,
por desnudas, não enjeitam
a mais discreta sabedoria.

Em sua transparência se inscrevem,
como a luz à luz se sobrepõe.
Trago na pele e nos olhos,
sobre a língua e o palato,
a memória escaldante

de uma mulher.
Devora-me
um álcool lento e sedicioso.
De todas as mortes sofridas,
só esta temo e não desejo.

Rui Knopfli
Moçambique

1.22.2011

Uma recordação



Lembra-me ver-te inda infante,
Quando nos campos corrias
Em folguedos palpitantes;
Eras bela! E então sorrias.

Depois, na infância, eras inda,
Junto ao cadáver rezavas
De tua mãe, com dor infinda;
Eras bela! E então choravas.

Num baile vi-te valsando
Da juventude nos dias,
Todos de amor fascinando;
Eras bela! E então sorrias.

Dias depois encontrei-te;
Nos céus os olhos fitavas;
Sem me veres contemplei-te;
Eras bela! E então choravas.

Quando ao templo caminhando
Entre flores e alegrias,
De esposa a vida encetando,
Eras bela! E então sorrias.

Quando na campa do esposo
Com teu filho ajoelhavas,
Grupo inocente e saudoso!
Eras bela! e então choravas.

Num ataúde deitada
Eu te vi em breves dias,
Mimosa flor desfolhada!
Eras bela! e então sorrias.

Sorrindo, na vida entraste,
Sorrindo deixaste a vida;
Alguma flor que encontraste
A espinhos a viste unida.

Sim, às vezes tu sorrias,
E os sorrisos o que são?
Quase sempre profecias
Das penas do coração.


Júlio Dinis

Coisas Declamadas



E desato as amarras dos navios
E das palavras que me fazem tua
Chegar é confessar que me desejas
Calar é confirmar que não despenso
O gesto em que, gaivota, me insinuo…
Se de leve no ombro tu me beijas
Pela seda da roupa te pertenço
Pela sede da boca te possuo


Rosa Lobato Faria

A cor do verde


Diz-me, meu amor
Diz-me, por favor

Da esperança
O verde é a cor.
Mas do verde
É qual a cor?

Diz-me, não te cales
Diz-me, mas não fales

Dos teus olhos
O verde é a cor.
Mas do verde
É qual a cor?

Diz-me, não entendo
Diz, não tenhas medo

Da inveja
O verde é a cor.
Mas do verde
É qual a cor?

Diz, se é segredo
A mim podes dizer

Do Sporting
O verde é a cor.
Mas do verde
É qual a cor?

Não é segredo nenhum
Eu digo, sem medo algum

O verde – é da
Cor do verde.
Pois só o verde
É do verde a cor.


Rui Zink

Lua


Disseram-me para olhar a lua
como fazem os apaixonados.
Nada aconteceu.
“Quero um poema teu.”
Em vez disso entrancei-te uma grinalda
de luas-cheias-de-promessas
e de quartos-crescentes-de-desejo.
E passei a noite, em branco, contigo.


Teresa Guedes

Cristal



Levantámo-nos da cama,
arrastando os lençóis pelas ruas.
É urgente encontrar um café,
encontrar uma mesa a um canto no telheiro
e ter com quem não falar.
Daquela esplanada os monumentos são excessivos.
O barroco enche-nos a boca de pedras.
Para as árvores, cultismo, conceptismo, é brisa
e o sol encima-se na talha azul acordada.
Mais um, outro. A estatuária fonte não seca.
Evitamos a sentimentalidade do cristal,
a desusada lágrima pública,
para que caia no poema em segredo.
Vem enfim o café servido por anjos. O alívio.
Um cigarro que nos conte das cinzas pulmonares
em trabalhos de restauro e contrabando.
A paisagem é interior e facciosa em milhares de degraus.
Mesmo quando nos levantamos, descemos.


Ana Salomé

A tua mão



Quando a tua mão pousou
sobre a minha mão
nesse rastro de ave
nesse peso de folha
eternizou-se o instante.


Maria de Lourdes Hortas

Dá-me tua mão


Dá-me tua mão
E eu te levarei aos campos musicados pela
canção das colheitas.
Cheguemos antes que os pássaros nos disputem
os frutos,
Antes que os insectos se alimentem das folhas
entreabertas.

Dá-me tua mão
E eu te levarei a gozar a alegria do solo
agradecido,
Te darei por leito a terra amiga
E repousarei tua cabeça envelhecida
Na relva silenciosa dos campos.

Nada te perguntarei,
Apenas ouvirás o cantar das águas adolescentes
E as palavras do meu olhar sobre tua face muito
amada.


Adalgisa Nery
Brasil

Em que idioma te direi


Em que idioma te direi
este amor sem nome
que é servo e rei?

Como o direi?
Como o calarei?

É como se a noite se molhasse
repentinamente, quando choras.
É como se o dia se demorasse,
quando te espero e tu te demoras.


Albano Martins

Tatuagem



a poesia
tem essa
de tatuar
a alma
de emoções


Ademir Antonio Bacca
Brasil

Chegar e Ficar



Chegar,
Como brisa que atravessa a janela.
Soprando de leve,
As brumas do passado.

Chegar,
Como o barco.
Trazendo alegrias,
Após enfrentar as procelas sombrias.

Chegar,
Como a saudade.
Que bate,
De manso, no coração.

Chegar,
Como chuva, fininha,
Mansinha, criadeira,
Necessária e tão querida.

Ficar,
Nas lembranças do passado,
Nas estampas do presente,
A retratar nosso ontem no hoje.

Ficar,
Para sempre.
Na imagem nunca esquecida,
Dos que nos são tão queridos.

A vida,
É chegar e ficar,
Para sempre.
Vida nunca será partida.


Cecília Meireles
Brasil


No sonho de hoje
era a nuvem,
doirada, sobre as messes...

(A nuvem que me foge!...)

Quisera
dormir eternamente,
embalado nos sonhos em que me aparecesses.


Saul Dias

Fugir! Furgir...


Fugir! Furgir..., fugir para além do mundo,
do caos, da morte ou do futuro...

Fugir de matar aquele poeta
que fala uma língua diferente da minha
mas que vive a mesma poesia!

Fugir do sangue, da morte, do pavor!...

- Eu ainda quero conhecer
o amor da donzela que desperta...

- Eu ainda quero escrever
o poema que há em mim... e que é belo!

Senhor!
Eu não quero matar... Quero viver!

E cantar os que esqueceste...


Tomaz Kim
Angola

É urgente que as pessoas se amem


É urgente que as pessoas se amem
sem vergonha e sem tristeza
Que se amem com orgulho
Com a alegria pagã da joie grega

É urgente que as pessoas não se escondam
por detrás das outras pessoas
das idéias das outras pessoas
dos muros espessos do medo

É urgente que as pessoas se amem

É urgente partilhar o pão e o corpo
com a claridade da terra molhada
nas manhãs de sol

É urgente assumir a verdade.


Manuela Amaral

1.21.2011

Súmula

Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.
Sei que os campos imaginam as suas
próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.

Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes canta e sangra.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino
do pensamento.

Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

- Era uma casa - como direi? - absoluta.

Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metias as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.

Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no esquecimento, ou na lembrança
total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento
rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia
desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
- Porque o amor das coisas no seu
tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.

As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
- Era húmido, destilado, inspirado.
Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com as suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto
da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente
completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.

Era uma casabsoluta - como
direi? - um
sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.

- Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem
para amar e ruminar.
O leite cantante.

Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
- Caneta do poema dissolvida no sentido
primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.

Poema não saindo do poder da loucura.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda
melancolia,
com furibunda concepção. Com
alguma ironia furibunda.

Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete. Sou
alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.


Herberto Helder