3.30.2011

Amanhecer em Estremoz



Uma a uma a noite abria
à luz matinal das rolas
as minúsculas portas da alegria.

Eugénio de Andrade

O seu rosto branco


Em tantas casa e praias fui falando.
Estava de copo na mão a saber que me olhavam;
ao sol e quase nu de bruços no calor da areia.
Com os lábios perturbava a saliência de uma orelha,
na minha perna direita repousava, dócil, a face esquerda
de um rosto, pele misteriosa. Os convidados
da festa decidiam partir. Quebrava-se o andar da noite,
eu vi-me só, posta em perigo a minha sede, toda
a ternura. Perseguíamos o prazer, talvez a imagem
da infância, esperávamos pelo sentido dos dias.
A rapariga japonesa tinha-me dito: você quer beber?
E também ela partira, o seu rosto branco
levara para longe a sugestão das flores de cerejeira.


João Camilo

3.29.2011

A acrobata deu mal um salto mortal


A acrobata deu mal um salto mortal
e ficou um pouco coxa para o resto da vida
todas as histórias de circo são tristes e sórdidas
esta também é
o empresário era mau
a acrobata não foi despedida
foi obrigada a escrever um romance
em quinze dias
a acrobata escreveu tanto e com tanta força
que abriu o pulso da mão esquerda
o empresário continuou a ser mau
outra vez
agora vai vender nougats
nos intervalos
sorvetes não pode ser
porque os ia deixar derreter
quem mal começa acaba pior
a acrobata ficou tão corada
que os nougats ficaram muito moles
a acrobata para ninguém dar por isso
engoliu os nougats muito moles
à frente dos clientes
e pagou-os do seu próprio bolso
que era o bolso do vestido velho de taffetas lilás
de uma trapezista que se tinha distraído
esta história começa mal mas não
acaba mal
acaba aqui
depois a acrobata combinou fugir
com as aranhas
e fugiram umas atrás das outras


Adília Lopes

Menina Perdida


Menina perdida
no bosque da vida.

Os olhos desertos,
os gestos errados,
os passos incertos,
os sonhos cansados.

Menina perdida,
desaparecida
nos longos caminhos
de pedras e espinhos.
Cabelos molhados,
pés nús, alma exangue,
vestidos rasgados,
mãos frias, em sangue.

Menina encontrada
na berma da estrada.
Andava perdida
mas já foi achada,
de branco vestida,
de branco calçada.

Menina perdida
no bosque da vida.

Fernanda de Castro

Tentáculos de estrelas




Podes agitar
Os teus cabelos esta noite
E sorrires amor
O céu trará
Seus tentáculos
De estrelas


Chagas Levene
Moçambique

Fim de Estação



Como nao sei se adivinham
Tempestade. Não Fim de UMA Estação
ter Borboleta morrem EO quebra vento
in altas Varandas. Por Trás dos Vidros e
defendemos o nosso TODAS contra a surpresas.
Morremos de antemão. E JÁ soluço Trovoada
escurecida dos nossos Pássaros voo-o na chuva.


Carlos Poças Falcão

queria escrever-te uma carta


queria escrever-te uma carta
amor
mas tenho hoje um bico de pássaro
na ponta de cada dedo


Isabel Solano

Cerimónia funesta



O corpo não responde
às vozes de comando,
como um cão estropiado
já desdenha os apelos
os antigos convites
às funestas moradas,
esqueceu-se do ponto
vai olvidando senhas
os códigos das grutas
acumulando lixos
as servidões austeras
diluem-se num canto
o corpo não atende chamadas
não estremece ao ruído da chave
não suporta
qualquer intromissão
secou num aterro,
os restos à vista
a memória escava
da lembrança os rastos
avidamente suga
de tal fausto os ossos,
de tão vitais cerimónias
nos tão secretos barcos
mesmo o pouco que resta
ainda se mastiga.


Fátima Maldonado

3.28.2011

Mudez


Quando por fim voltares, traz no olhar
a nesga de areal onde algum dia
te encontrei entre a espuma e a maresia,
passeando a surpresa de haver mar.

Traz também nos cabelos o luar
e deixa que o veneno da poesia
nos envenene aos dois em sintonia,
como exige o mistério do lugar.

Talvez assim eu possa finalmente
segredar-te as palavras que não soube
dizer-te no momento em que te vi

pela primeira vez e, de repente,
o mundo foi tão grande que não coube
na minha voz e logo emudeci.

Torquato da Luz

O espelho dos magos

para o Heliodoro Baptista

Pombas radioactivas
soltam-se-me das mãos
quando chega o pôr-de-sol
e partem disciplinadamente
varejando o horizonte
que as leva em direcção
às rocas da paz.

Vede a disponibilidade delas
mesmo sabendo tão longa
a escalada do galho onde mora
do outro lado da noite.
Hão-de compreender de certo
quanto mais altos o andaime
para o ensaio da queda
a falésia do cárcere
mais puro renascerei
contra todos os vaticínios
pois reservado fora-me
o destino daqueles
que na dor se desplumam
em lamelas de cinza
como folhas anémicas
dum cipreste qualquer.

Caí vassalo do medo
em território de algozes
sitiado por veraneantes
tubarões sem pergaminhos
a tecerem contas de piolhos
de cócoras sob os autoclismos.
Aprendi a solfejar
com o queixume dos búzios
onde retine a mensagem
dos náufragos da injustiça.
Venho de um continente
de transmigrados de calamidade
em calamidade
com meninos que morrem
desapercebidamente
no dorso das suas mães
a caminho dos centros
de emergência da cruz vermelha.

E quando de modo abusivo
me detive junto das bordas
da indenunciável imagem
dos teus disfarces reflectida
no mármore em que oficias
morri no espelho de um mago!


Julius Kazembe
Moçambique

3.27.2011

O povo das Ilhas quer um poema diferente


O povo das Ilhas quer um poema diferente
para o povo das Ilhas:
Um poema com seiva nascendo no coração da ORIGEM
Um poema com batuque e tchabéta e badias de Santa Catarina
Um poema com saracoteio d’ancas e gargalhadas de marfim!
O povo das Ilhas quer um poema diferente
para o povo das Ilhas:
Um poema sem homens que percam a graça do mar
E a fantasia dos pontos cardeais!


Onésimo Silveira
Cabo Verde

Vendedor da vida



Eu só, sozinho no silencio da vida,
saciando a vontade, vendendo a vida.
vestindo de solidão puxando a lua ri a vida.
pagando a divida.

Eu ruço, envelhecido, vendendo a vida.
deitado nas estrelas, agora é a vida
sonhando nas aguas, lutando pela vida.
lutar é viver a vida.

No sol bebo os raios, caregando a vida,
escutando a fala do vento, oiça a vida,
a verdade está na vida.

Navegando nos soures, lágrimas. É a vida,
Chorar é sofrer, vestir a coragem da vida
lutar é sintir a vida.


Adilson Augosto Nancassa
Guiné

3.25.2011

O coval



Excêntrica
é a minha indignada
mesquinha forma de sofrer.

Lúcido
eu a desencher o mundo
tapando-me no mesmo coval.

José Craveirinha
Moçambique

3.24.2011

Sobressalto



amor,
as luas mortas
caíram no segredo deste amor;
fujamos pela praia
embarquemos no vento!

as luas mortas
são mundos apodrecidos…

o nosso amor balbucia
cantigas da era nova
e nas mãos
temos o húmus adubado e quente
para o jardim redolente
para a seara de pão
para a seara de amor…

nada nos serve fugir
pior que fantasmas
são os miasmas
dos mundos apodrecidos…

amor,
nos vales ermos, esquecidos
de toda a flor,
de todo o riso,
do amor ao amor
das madrugadas e dos pássaros.

(fechadas todas as portas
ao susto e à escuridão,
com um beijo verde de esperança
cantando no coração)

amor,
enterremos as luas mortas…


Lília da Fonseca
Angola

3.23.2011

Macela



Macela
Sementes de erva doce
Falco alexandrii
Sementes de endro
Aeonium gorgoneium
Coroa-de-rei
Passar iagoensis
Gestiba
Pandion halieatus
Pandion halieatus


Vasco Martins
Cabo Verde

3.22.2011

Poema do amanhã


Num esforço de amanhã hei-de nascer
e dizer aos homens de hoje quem eu sou.


Manuela Amaral

3.21.2011

De que serve



De que me serve a placidez da Primavera?
O grito desconjuntado dos pássaros,
a inquietude rumorejante desta paisagem de folhas?
De que me serve o cheiro acre
dos dias terminados e a
memória trémula das mãos,
do desejo pálido da pele?
De que me serve o
sino-marca-horas,
marca-passo-do-desejo,
o augúrio impertinente das horas
que não tornam mais?

Os sulcos indiferentes
da amarga poesia do teu corpo.
O pousio das horas do silêncio.
A dança equilibrista
das folhas do Outono.

Na sombra onde me encontro
apenas a poalha das estrelas,
uma mácula de luz, ou
talvez só a sua grata memória.


Alexandra Malheiro

Era um encontro impossível.


Era um encontro impossível. Deitados à noite
sobre uma colcha apenas conseguiram tocar-se
com o choro, mas o cavaleiro não conhecia esse
segredo, nem via que o seu beijo se assemelhava a
uma morte definitiva. Porque tudo nele era matéria
flutuante, não suportava a felicidade. Uma luz
que não morria saía dela, como um barco que
demora séculos a desfazer-se abandonado num
porto, já devorado pelas algas. Por isso, o homem
vestia de novo a armadura e esperava até que,
desaparecido o anjo, solta para a caça, ela voltasse
a ser a presa sem covil, à mercê da sua lança, onde
por suas próprias mãos havia colocado uma insígnia.


Jaime Rocha

Borboletas



Borboletas
sonâmbulas
do desejo
-as minhas
tuas mãos.


Albano Martins

Doçura



Os beijos em África são doces
doces como o untué que as crianças
devoram p'la manhã

As carícias em África são doces
doces como a banana-ouro
que teima em desaparecer da nossa ilha

O amor em África é doce
doce como o belo abacaxi
que se cria no mato e no quintal

Os homens em África são doces
porque os seus olhos são o untué das crianças
o seu corpo o belo abacaxi
e o seu sexo a tal banana-ouro
que não vai desaparecer da nossa ilha.


Maria Olinda Beja
São Tomé e Príncipe

3.20.2011

Tardes inventadas


As tardes inventei-as.

Fulgurantes umas,
sonolentas outras,
quentes ou arrepiantes
e todas
geradoras de instantes
impossíveis...

Atiro um braço ao ar
e quero que ele prendauma estrela,
um cometa,o floco de renda
de mil cassiopeias...

É dia e há luar...

As tardes inventei-as.

Saúl Dias

Primavera


O homem funerário tirou respeitosamente o boné preto
quando o morto entrou no cemitério
e do boné sairam dois coelhos brancos
um ramo de tulipas
três cravos amarelos
e um cavalo árabe das noites.
É Primavera disse o cavalo árabe das noites
e comeu as tulipas e os cravos
e assustou os dois coelhos brancos
É Primavera
e as pessoas começaram a morrer
porque gostam de flores e de sol
e de música lenta


Y. K. Centeno

Eu vou tirar do dicionário


Eu vou tirar do dicionário
A palavra você
Vou troca-lá em miúdos
Mudar meu vocabulário
e no seu lugar
vou colocar outro absurdo
Eu vou tirar suas impressões digitais
da minha pele
Tirar seu cheiro
dos meus lençóis
O seu rosto do meu gosto
Eu vou tirar você de letra
nem que tenha que inventar
outra gramática
Eu vou tirar você de mim
Assim que descobrir
com quantos “nãos” se faz um sim
Eu vou tirar o sentimento
do meu pensamento
sua imagem e semelhança
Vou parar o movimento
a qualquer momento
Procurar outra lembrança
Eu vou tirar, vou limar de vez sua voz
dos meus ouvidos
Eu vou tirar você e eu de nós
o dito pelo não tido
Eu vou tirar você de letra
nem que tenha que inventar
outra gramática
Eu vou tirar você de mim
Assim que descobrir
om quantos “nãos” se faz um sim


Alice Ruiz
Brasil

Das paixões





a nudez do teu corpo
é ideia que vaga solta
no campo da fantasia
abre portas,
ressuscita sonhos
e incendeia
as minhas emoções.


Ademir Antonio Bacca
Brasil

Noutra praia



(dedicado a FL, que regressou com as cores da ria)

Mas tu pensas
que o mar te não esqueceu:
por isso voltas cada ano a esta praia
onde tudo o que permanece te ignora;
e encaras o mar como se fosses tu,
ainda tu,
quem recebe na face a mudança dos ventos


Luís Filipe Castro Mendes

3.19.2011

Espelho


Atravessámos o mistério suspenso
do brilho mágico do espelho
porque fomos aos lugares proibidos,
ao denso leito de um caudal velho.

Nas paredes envoltas em tédio e solidão
pressagiavas gritos e pavor
porque o eco trazia em vão
a vontade transida do teu amor.


Jorge Arrimar
Angola

Lírico


A morte levou a poeta,
porém
os verbos e os ensinamentos de amor
por ela deixados
na História ficaram


Ada Ciocci
Brasil

3.17.2011

Canto anónimo


Canto anónimo
de terra e nervos, eis de que sou feito,
porque homem sou, homem simplesmente.
saibam as estrelas o que penso,
seja ou não seja o abismo imenso.
quero elevar a minha voz,
que foi feita para gritar,
quero erguer os meus punhos,
que foram feitos para bater ou perdoar,
quero dirigir os meus pés
pra onde a razão o ordenar.
homem sou, homem simplesmente,
quero para mim a vida, vivê-la inteiramente.
e vós, estrelas, sabei isto que sei:
de terra e nervos, eis de que sou feito.
e seja ou não o abismo imenso.
eu, homem, homem simplesmente,
conquistar-vos-ei…


Antero Abreu
Angola

Coquette dos prados



Coquette dos prados,
A rosa é uma flor
Que inspira e não sente
O encanto d’amor.

De púrpura a vestem
Os raios do Sol;
Suspiram por ela
Ais do rouxinol:

E as galas que traja
Não as agradece,
E o amor que acende
Não o reconhece.

Coquette dos prados
Rosa, linda flor,
Porquê, se o não sentes,
Inspiras amor?

Almeida Garrett

Derrocada



A asa de um morcego transparente
e no canto um olho descaído
de pestanas longas espreitando
o ácido viscoso da loucura
escorrendo pelos telhados do mundo

Viajante incansável do pasmo
no silêncio das órbitas vagabundas
dos mares-mortos delírio-espasmo
do cansaço mole das brisas vazias
que do nada se afirmam nas florestas
do ódio de gigantes e anões liliputianos

Blocos monolíticos tristes quedos
imagens-desespero cancerosos
miasmas-visco cobras moribundas
agonizando em convulsões de magma
lanças setas envenenadas dirigidas
ao coração das virgens e crianças

Sombra parda pálida acutilante
teu vulto de insônia transparente
bóia nas trevas flutuantes
da noite dos espiões pelas estradas
das feras que matam as ovelhas
e apunhalam pastores no caminho

Sombra feroz invernal medonha
destroços e cadáveres pútridos
sugando o seio das madonas
e acalentando monstros nas cavernas
pelas horas taciturnas do medo dos teus passos.


Yolanda Morazzo
(Cabo Verde)

Homenagem a Hoji-ia-Henda



peito ao vento
na anhara em chamas
Hoji valente
De coração henda
Braço e arma
Um só

nem o leão ousado
ruge mais:
no troar dos passos
Hoji comandante
de coração Henda
o ritmo de combate

peito ao vento
na anhara em chamas
Hoji Camarada
em teus olhos Henda
um fulgor canta


Joffre Rocha
Angola

3.16.2011

Não conhecia a noite povoada


Não conhecia a noite povoada

Não conhecia a noite
cheia por dentro de espaços
e de tempos

Não conhecia a noite
andando primeiro pela estrada
e andando depois por um caminho

Não conhecia a noite
dos corpos sem amor
em êxtase de pé
devagarinho


Yvette K. Centeno

Exílio



É noite e Cyborg dorme o seu sono de morte,
os dois acordes do som, na noite repetem:«Cyb-org,
Cyb-org) Cyb-org) Cyb-org...» e os autómatos crescem
na sombra funérea e ígnea dos luzes horizontes,
alguns ainda acendem os seus fachos claridade
para o descair ligeiro das placas violeta.

Irrompeu a cidade com um tremer de fumo de miragem
e toda se inflamou na sua tristeza sem igual,
com a cor do cimento, do ,branco e das vigas sobre o mar
aqui se implantou, aqui para sempre a luz paragem.
E nunca nenhum deus a jamais tentou vencer
e ninguém sem respeito para ela pode olhar.

É noite agora, o palácio adormecido onde de lado eu estaria
no estar sem espera, fecham as janelas e as grades
dos muros ainda porventura sem lembrança,
mas anoitece ainda a minha infância e sem correr,
eu, fantasma do que fui, procuro estar
na morte tão etérea de uma ave de metal.


Alexandre Vargas

O novo homem


O novo homem
traz nos olhos punhais
e mensagens secretas…
e zagaias de sonho
nas mãos negras, desertas…

olha para nós a direito
e tem um riso branco
que lhe dilata o peito…

passa um frio entre os homens
de redeio e de espanto…


Amélia Veiga
Angola

3.15.2011

Existes


Nada garante que tu existas.
Näo acredito que tu existas.

Só necessito que tu existas.


David Mourão Ferreira

Anúncio obsceno


Vou pôr anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro da água.
Vou querer que me ame e abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro relatório
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente
uma espuma de cinza em muitas mãos.


António Franco Alexandre

3.14.2011

Aragem



Como aragem perfumada
a mim te entregas, minha amada.

E não sei se existes ou se te sonho:
meu desejo te nomeia
pura brisa de folhagem.

Que aroma me envolve quando te despes?

Esta fragrância que me inebria
vem do teu corpo ao desnudar-se
ou da luz rosada que amanhece?


Gonçalo Salvado

Teus seios



Teus seios... quando os sinto, quando os beijo
na ânsia febril de amante incontentado,
são pólos recebendo o meu desejo,
nos momentos sublimes de pecado...

E às manhãs... quando acaso, entre lençóis
das roupagens do leito, saltam nus,
lembram, não sei, dois lindos girassóis
fugindo à sombra e procurando a luz!...

Florações róseas de uma carne em flor
que se ostenta a tremer em dois botões
na primavera ardente de um amor
que vive para as nossas sensações...

Túmidos... cheios... palpitantes, como
dois bagos do teu corpo de sereia,
tem um rubro botão em cada pomo
como duas cerejas sobre a areia...

Quando os tenho nas mãos... Quantas delícias!...
Arrepiam-se, trêmulos , sensuais,
e ao contato nervoso das carícias
tocam-me o peito como dois punhais!...

Meu lúbrico prazer sempre consolo
na carne destas ondas revoltadas,
que são como taças emborcadas
no moreno inebriante do teu colo...


J. G. de Araujo Jorge
Brasil

3.13.2011

havemos de ser outros amanhã



havemos de ser outros amanhã
ou daqui a momentos ou já agora
e dificilmente reconheceremos o espaço da alegria
em que noutras horas chegámos a nascer

e então meu amor
(não sei se reparaste mas é a primeira vez
que escrevo meu amor)
teremos nos olhos a cor sem cor
das roupas muito usadas
e guardaremos os despojos das noites
em que tudo sem querer nos magoava
nas gavetas daqueles velhos armários
com cheiro a cânfora e a tempo inútil
onde há muitos anos escondemos
um postal da Torre de Belém em tons de azul
e um bilhete para a matiné das seis no São Jorge
onde um homem (que muitos anos depois
segundo me contaram se suicidou)
tocava orgão nos intervalos em que
nos beijávamos às escondidas

e dessas gavetas rebenta a poeira do tempo
que matámos a frio dentro de nós
com os filhos que perdemos em camas de ninguém
e as pedras que nasceram no lugar das cinzas
e havemos de perguntar (mesmo sabendo que
já não há ninguém para nos responder)
por que foi que nos largaram no mundo
vestidos de tão frágeis certezas
por que nos abandonaram assim
no rebentar de todas as tempestades
sabendo que o futuro que nos prometiam batia
ao ritmo das horas que já tinham sido
destinadas a outros e nunca
voltariam a tempo de nos salvar

mas enquanto vai escorrendo de nós o pó
desses lugares onde ainda há vozes
que não desistiram de perguntar por nós
vamos bebendo a água inicial das nossas línguas
um ao outro devolvendo o pouco
que conseguimos salvar de todos os dilúvios


Alice Vieira

Arte Poética



Gostaria de começar com uma pergunta
ou então com o simples facto
das rosas que daqui se vêem
entrarem no poema.

O que é então o poema?
um tecido de orifícios por onde entra o corpo
sentado à mesa e o modo
como as rosas me espreitam da janela?

Lá fora um jardineiro trabalha,
uma criança corre, uma gota de orvalho
acaba de evaporar-se e a humidade do ar
não entra no poema.

Amanhã estará murcha aquela rosa:
poderá escolher o epitáfio, a mão que a sepulte
e depois entrar num canteiro do poema,
enquanto um botão abre em verso livre
lá fora onde pulsa o rumor do dia.

O que são as rosas dentro e fora
do poema? Onde estou eu no verso em que
a criança se atirou ao chão cansada de correr?
E são horas do almoço do jardineiro!
Como se fosse indiferente a gota de orvalho
ter ou não entrado no poema!


Rosa Alice Branco


3.12.2011

As Chaves


Felizes os homens que tem as chaves
porque só encontram portas abertas...


Como podem tantos homens dormir sossegados e felizes
de portas fechadas,
quando essas portas se fecham para tantos homens
que ficam sempre ao relento
e nunca podem entrar?

Neste mundo de tantas portas,
quando teremos cada um, a sua chave,
e a sua hora de voltar?...
(1944)


JG de Araújo Jorge
Brasil

O voo do pássaro


Neste espaço a si próprio condenado
Dum momento para o outro pode entrar
Um pássaro que levante o céu
E sustente o olhar.

...

Com a tristeza acender a alegria
Com a miséria atear a felicidade
E no céu inocente da visão
Fazer pulsar um pássaro por vir
Fazer voar um novo coração.


Alexandre O'Neill

Tropecei na minha sombra.


Tropecei na minha sombra.
Oiço desde então
ecos do mundo.
Rios, que mar demandais?


Flor Campino

3.11.2011

Canção


(para Fiama Hasse Pais Brandão)

O buxo forma um arco com algumas
dezenas de léguas que é preciso percorrer.
Depois há um pomar de magnólias brancas,
de onde se pode vislumbrar o esplendor de um regato.
Deste regato, contando cinquenta passos, alcança-se o jardim.
Cada um dos canteiros do jardim está disposto numa singular
correnteza de sete pequenos losangos, que são coroados
por um círculo de terra. Em cada círculo de terra
há flores brancas e amarelas, sendo jacintos as mais vigorosas
e gerânios as que dissipam a sombra. Segue-se, depois,
por uma estrada de saibro, e descobre-se um lago,
enquadrado por quatro torres vermelhas. O lago
é de um azul penetrante e as árvores que o circundam
são sagradas. Depois, segue-se pelo caminho da esquerda,
que se bifurca na ponte de pedra. Daqui, segue-se em frente,
até ao campo de girassóis, que dez colmeias pontuam
e um velho castanheiro vigia, desde o tempo dos tempos.
Depois, há uma clareira que se deve atravessar até que se encontra
um portão. Não havendo ninguém ao portão, acende-se um archote
para iluminar o caminho. Esta luz deve ser obstinada.
Depois, à direita, há um túnel, e, logo após, uma gruta
e uma longa escadaria, que se deve subir como uma montanha.
Encontra-se, por fim, a antecâmera. No centro da antecâmera
ergue-se um trono e, à frente do trono, há uma cama,
em que uma mulher está adormecida. Sobre o rosto
desta mulher adormecida está um livro aberto,
que é preciso ler até que o amor seja um laço de sangue.
E tudo isto feito, Fiama há-de estar viva.


Amadeu Baptista

3.10.2011

Chovia...chovia



Naquela tarde, como chovia!

Me lembro de que a chuva caia
lá fora
sem parar,
e seu surdo rumor até parecia
um sussurro de quem chora
ou uma cantiga de embalar...

Me lembro de que tu chegaste
inquieta, ansiosa,
mas logo te aconchegaste
em meus braços, quietinha...
(...enroladinha como uma gatinha...)

E eu quase não sabia que fazer:
se de encontro ao meu peito te deixava adormecer...
se te mantinha acordada, para seres minha...

Me lembro que chovia, chovia sem parar...
E que a chuva caía a turvar as vidraças
anoitecendo o quarto em tons baços...
Me lembro de que te sentia
aconchegada em meus braços...
Me lembro de que chovia...
E de que era bom porque chovia,
e porque estavas alí, e porque eu te queria...
Sim, me lembro que tudo era bom...
E que a chuva caía, caía,
monótona, sem parar,
naquele mesmo tom...

Naquela tarde, amor, como chovia!

Agora, quando longe de ti, nem sou mais eu
em minha melancolia,
não posso mais ouvir a chuva cair
que não fique a lembrar tudo que aconteceu
naquele dia...

Naquele dia
enquanto chovia...


JG de Araujo Jorge
Brasil

A tua mão branca


Dá-me a tua mão branca
A que chora com olhos à janela
Aquela que ninguém vê da rua
Beijada pelo sal dos astros
Que diz anjos com os lábios fechados
Na que ninguém semeia os dedos
E deita o rosto cansado
Que existe e é de mar e lua
E que os invisuais vêem nitidamente
Dá-me a tua mão branca
E acredita que também é minha
E deixa-me escutar os deuses nos nódulos
E auroras que outras mãos esmagam
A que dá frutos sem precisar de terra
De beijos lábios e sorrisos
E voemos em asas de adorinhas.


Manuel Feliciano

3.09.2011

A utopia dos olhos escancarados


Se num momento de loucura
acaso arriscares acima do tédio
e afoito sozinho dobrares
a agreste solidão da esquina dos dias,
poderás então entrever
por entre as brumas do tempo
a imensa multidão e o verde prazer
das tuas mais urgentes utopias.

Se depois com ardor escreveres
- ridícula como o poeta a dizia -
uma simples carta de amor
cuja verdade ofereça fogosa o seu pudor
sinceros significados tão prementes
que a ouro fiquem bordados
no seio nu das palavras inexistentes,
imune farás tombar do muro os pecados
com que este presente impune
procura sarcástico esconder-nos o futuro.

Se porem impossível te for
a sangria das palavras a sério
e ao cansaço sem outra saída
com fúria não conseguires opor
a beleza dum punho bem apertado,
arrepia caminho e não ouses.
Nunca ouses monstro malfadado
dobrar a esquina deste tempo
de cobardias prenhe e silêncios cheio.

Porque só o amor mata a hipocrisia
e reconhece os homens iguais
porque para além deste dia
só de olhos escancarados se sonha a utopia.


Adriano Alcântara
Moçambique

Um Pássaro a Morrer


Não é vida nem morte, é uma passagem,
nem antes nem depois: somente agora,
um minuto nos tantos duma hora.
Uma pausa. Um intervalo. Uma viragem.

Prisioneira de mim, onde a coragem
de quebrar as algemas, ir-me embora,
se tudo o que em mim ria agora chora,
se já não me seduz outra viagem?

E nada disto é céu nem é inferno.
Tristeza, só tristeza. Sol de Inverno,
sem uma flor a abrir na minha mão,

sem um búzio a cantar ao meu ouvido.
Só tristeza, um silêncio desmedido
e um pássaro a morrer: meu coração.

Fernanda de Castro

A verdade cabia nos teus olhos



A verdade cabia nos teus olhos, mas estes fecham-se
com um movimento que se torna simples. Apenas a espuma
era trazida pelas ondas e outros vestígios chegaram
de um dia humedecido; depois, vimos como se deteve
e ficou de novo submersa. Mas é dela que talvez se receba
um aviso. Ainda hoje a esperamos quando junto de nós
finalmente se encontra uma nova imagem abandonada
pela proximidade da noite. Sabias que a verdade é um aviso?


Fernando Guimarães

O corpo não espera



O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sêde, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...

Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.


Jorge de Sena