6.30.2011

Os girassóis



Assim fremente e nua,
a luz só pode ser dos girassóis.
Estou tão orgulhoso
por este flor difícil ter entrado pela casa.
É talvez o último verão,
tão feito de abandono é meu desejo.
Mas estou orgulhoso dos girassóis.
Como se fora seu irmão.

Eugénio de Andrade

6.29.2011

Estou de novo no meu país



Estou de novo no meu país
ou num pedaço de terra exasperada,
que é o teu corpo,
com a mesma sede dos subterrâneos,
com a mesma ânsia do sol
que busca o poente debaixo do oceano.

Para ele parti todo dardejante
e sem deixar de colher o grito da noite,
Teu corpo onde me deito à noite
e atravesso de mar em mar
como quem procura o caminho súbito,
aqui que reside o ar, todo o calor, a melhor paz,
é o porto da chegada do vento, o céu dos pássaros j:
ou o verdadeiro vinho dos uvais,
ou mesmo o trigo.

Teu corpo,
só o teu corpo, meu amor, e mais nenhum,
tem flancos curvos, estradas profundas, algas livres,
estrelas marinhas, corais doces e ilhas e lagoas.

Porém cantar o teu corpo
é como se trouxesses a boca à beira do mar
e me contaminasses a saliva com o sabor do pão,
a luz e toda a sorte que procuro: o beijo,
os dedos, os corais, a cor da música e o uivar
das águas.


Adelino Timóteo
Moçambique

Duas canções do silêncio


Ouve como o silêncio
Se fez de repente
Pra o nosso amor

Horizontalmente…

Crê apenas no amor
E em mais nada
Cala; escuta o silêncio
Que nos fala
Mais intimamente; ouve
Sossegada
O amor que despetala.
O silêncio…

Deixa as palavras à poesia…

Vinicius de Moraes
Brasil

Três rosas


Sempre, mas sobretudo nas brumosas
Horas da tarde, quando acaba o dia,
Quando se estrela o céu, tenho a mania
De descobrir, de ver almas nas cousas.

Pendem deste gomil três lindas rosas;
Uma é rosada, a outra branca e fria,
Rubra a terceira; e a minha fantasia
Torna-as humanas, vivas, amorosas.

Sei que são rosas, rosas só! mas nada
Impede, enquanto cai lá fora a chuva,
Que a minha mente a fantasiar se ponha:

Por ser noiva a primeira, é que é rosada;
Branca a segunda está, por ser viúva;
A vermelha pecou ... e tem vergonha!

Eugénio de Castro

Com a tua letra


Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.

Fernando Assis Pacheco

A nostalgia



Ela queixava-se da sua distracção.
Como se fosse verdade que ele
não a amava como ela dizia que
o amava. Ele pouco ou nada
sabia do amor, por isso que
resposta certa podia sair dos
seus lábios? É verdade que
andara perdido pelas cidades
e por vários países durante anos.
Um dia ferira-o uma dor terrível,
marcara-o a perda de um amor
duradoiro. Quando ela falou e ele
pôde enfim prestar atenção ao
que ela dizia, confundiu-se no
seu espírito a memória desse
amor destruido com a nostalgia
do amor que não tinham ainda
vivido, ele e ela. Mais do que isso
que podia saber? Calou-se. Um dia
talvez pudesse habituar-se de novo ao
sentido aprendido e rejeitado do mundo.


João Camilo

A cereja


A cereja começou por uma flor
branca e singela.
(talvez tenha começado um mês antes,
num dia em que o cerdeiro surpreendeu
na sua própria carne mil ânsias e tremores
de renascer.
Isto foi
na primavera, antes de o sol ser rei.)


A flor agitou-se, murmurou
recados de amor ao ar embriagante
duma manhã de Abril.
Chamou as abelhas,
amou-as uma a uma e a elas confiou
o sémen amarelo, caprichoso do seu corpo -
como alguém que depõe um beijo sobre os dedos
e o sopra pelos ares à boca amada.
O milagre deu-se (o segundo milagre)
de esse sémen fecundar um ventre amigo, ardente,
um ovário silencioso e obscuro, antro de vida,
um templo de nascer.
E a cereja fez-se! redonda, verde, miúda,
de longa chanca a prendê-la ao ramo,
ela desarranjou
a barriga do ciganito louco
que, tremendo de impaciência, subiu, subiu,
no tronco a pino as bagas de vinagre.


Fez-se maior: um fruto claro,
pequeno planeta límpido e sereno.
Rosado
e logo após rubro, da sede de entregar-se,
piscou o olho aos estorninhos,
aos tentilhões.
Ao longo das estradas, numa versão humilde,
manteve com vagar
suas longas conversas com as silvas
e ouviu da seara ali ao lado
o deflagrar de espigas anunciando o verão.



Um dia (como uma jovem prenhe alvoroçada)
sentiu dentro de si um estigma de vida intrusa
bem arrumadinho ao coração.
Lembrou-se então das bodas consentidas,
núpcias nervosas,
carícias de um louco e breve insecto.
Matrimónio fugaz - seu filho agora
é dulcíssima broca,
arrasta-se no ventre
e perfura-lhe a carne em busca de ar e luz.



Está velha e não a colhem. Alcandorada
no último dos galhos do cerdeiro,
olha com cio e saudade os garotinhos
que passam junto ao toro. Está só e tem inveja
de outras que viu cumprir-se, comidas
com um naco de pão,
serem jantar de gente que não janta;
e outras que viu em pares, pendendo orgulhosas,
serem os brincos de tontas raparigas
que não têm outros brincos.
Está só. Encarquilhada, inútil,
recusada de melros e pardais,
a cereja lentamente se enrola sobre si
e morre.


A.M. Pires Cabral

6.25.2011

O sacrário



A ausência do corpo.
Amor absoluto.

Hossanas de sol.
De chuva.
De brisa.
E de andorinhas
resvalando as asas
no ombro de uma nuvem.

Com uma hérbia mantilha
por cima velando
o teu sacrário.

José Craveirinha
Moçambique

6.24.2011

Teu corpo seja brasa


teu corpo seja brasa
e o meu a casa
que se consome no fogo
um incêndio basta
pra consumar esse jogo
uma fogueira chega
pra eu brincar de novo


Alice Ruiz
Brasil

6.23.2011

Acho que é isso...


tem os que passam
e tudo se passa
com passos já passados
tem os que partem
da pedra ao vidro
e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado


Alice Ruiz
Brasil

6.22.2011

Pano de fundo



por trás destes olhos
perderam-se encantos tantos
de se perder a conta

quantos sonhos banharam-se
neste azul que enfeitiça?

quantas paixões naufragaram
em águas tão traiçoeiras?

por trás deste olhar
palavras desavisadas
estilhaçam-se feito vidro
no caminho de bala perdida.


Ademir Antonio Bacca
Brasil

Ser tudo não basta



Não sou homem
nem mulher
nem lésbica
ou pederasta

Sou tudo

Mas ser tudo
não me basta


Manuela Amaral

6.20.2011

As palavras se sujam de nós na viagem



Os rios recebem, no seu percurso, pedaços de pau,
folhas secas, penas de urubu
E demais trombolhos.
Seria como o percurso de uma palavra antes de
chegar ao poema.
As palavras, na viagem para o poema, recebem
nossas torpezas, nossas demências, nossas vaidades.
E demais escorralhas.
As palavras se sujam de nós na viagem.
Mas desembarcam no poema escorreitas: como que
filtradas.
E livres das tripas do nosso espírito.


Manoel de Barros
Brasil

Ausência



Tu dizes na tua última carta que as palavras
são pouca coisa e que só a circunstancia o poder
tocar-me com as tuas mãos evitaria que o cavalo
cinzento da ambiguidade comece a exigir um braço forte.
Mas eu sei o que tu queres dizer: que os teus seios
a linha das tuas pernas no veludo das calças
os fios loiros que no teu pescoço imitam
os quadros de Botticelli as violas de Vivaldi são
as papoilas vermelhas que deixaram de estar
no que eu digo quando falo das searas de oiro.


João Camilo

6.19.2011

Nas mãos sinto a luz



Nas mãos sinto a luz, a êxul luz
que vem das paliçadas da mansão,
a luz azul em clarificada zona então
aproxima de mim o seu facho de horizonte.

E logo eu a lembrar o querido monte
em que pousada estava sobracente a ramaria,
e logo eu então a pedir à maresia
que nos brilhos unos do futuro aproximasse

esse rumor de aves onde os raios enfeitasse
e eu oco no caminho que me guia
contivesse as minhas mágoas do passado,

e surgisse ali a minha alma em fogo-fátuo
estivesse eu em toda a dimensão do brusco
a nascer das folhas com a boca em luz arado.


Alexandre Vargas

Cigarra



Diamante. Vidraça.
Arisca, áspera asa risca
o ar. E brilha. E passa.

Guilherme de Almeida
Brasil

Minha casa


Minha casa hoje,
tem janelas abertas para o nascente,
para o poente,
e,
também para a larga estrada,
aquela que conduz ao limite,
pela frente.
Minha casa solitária,
Branca e alta,
embora esteja plantada em estéril campo,
é toda circundada de verde, paz e silêncio.
Nova e antiga casa,
onde o Amor e a Esperança,
ainda são uma constante.


Ada Ciocci
Brasil

6.18.2011

O Segredo da Matéria



Subo ao sótão e tenho seis anos
pelas escadas que rangem
sob os pés que voam em segredo,
rangem como a porta a abrir
para a luz filtrada dos pavores da infância
onde espero um pouco
por tudo o que me espera desde a eternidade.
Tenho sete anos e a cinza confunde-se com a luz
depositada no tempo. As arcas dão a ver o outro lado
do mundo espalhado pelo chão à minha volta.
Não são objectos mas o próprio mistério da existência
que vai passando pelas minhas mãos
quando tenho oito anos, quando tenho agora
o segredo de uma porta que abre para a casa.
Percorro os caminhos da mesa, da cama, da lareira,
as raízes da casa são o sótão
onde a luz toca nas mãos o infinito.
Subo pelos olhos espantados
e espero ainda pela aurora que me aguarda
aproximando-se lentamente do seu pó.


Rosa Alice Branco


6.17.2011

Ave da madrugada



ave da madrugada
prometida
sobre a margem futura
do rio fremente,
voa-me tua semente
nesta viagem
sentida e pura
nos nervos tensos…

ave da madrugada
diferente
sobre o céu fecundo
dos bosques densos do mundo,
voa-me tua semente
nesta viagem
dorida e madura
nos nervos tensos…

ave da madrugada
certa
sobre a agonia do mar
dos ossos insepultos,
voa-me tua semente
nesta viagem
desperta e dura
nos nervos tensos…

ave da madrugada
rutila
sobre o chão absoluto
das lavras do futuro,
voa-me tua semente
nesta viagem
que cintila e perdura
nos nervos tensos…


António Cardoso
Angola

6.16.2011

Bósforo



Um dia minha âncora erguer-se-á dum porto qualquer,
e nesse instante o horizonte entrará num frenesim.
Os mármores diluir-se-ão sob as águas indefinidas
como na travessia entre Eminönü e Üsküdar, a luz
se dilui
no espelho do alvorecer dos minaretes de Istambul

Corrido o mar chega o silêncio. A distância amarra,
e mergulho num sotaque de transterrado.
Aos vapores na correria entre dois mundos
entrego o lirismo da minha língua — este sabor
a enxofre dos caranguejos das ilhas,
para que ela se dilua na água de cobre do entardecer.


Ivo Machado

Vento de liberdade


Vento de liberdade
das entranhas da terra
irrompe um vento alucinado
que varre… varre… varre
as folhas secas do mundo…

vento que geme e uiva fundo
e fere como punhais
o coração dos mortais…

vento horrível e cruel
que espezinha e enrodilha
e dá guerra sem quartel…

e ora rasteja em gemidos,
ora se eleva em furores
e uiva como um trovão,

mas em todos os sentidos
é VENTO DE LIBERDADE
que o pobre mundo assombrado
pretende reter na mão…


Amélia Veiga
Angola

6.15.2011

Abri a casa


Abri a casa
às nuvens
mas quem se alojou nela
foi o vento.


Flor Campino

6.14.2011

O café


Sentadas nas mesas do café
as pessoas olhavam sem ver bem
e nos olhos de cada uma iam passando a sério
os ódios pequeninos quotidianos
como um enterro de terceira classe lento
e grave
seguido por dois cães de luto
e um chapéu funerário sem cabeça


Yvette K. Centeno

Vício



Tu nunca bates no meu pensamento à hora de entrar.
Chegas de repente, invades tudo, e é impossível te expulsar
por que então já sou eu que te procuro.

Não escolhes momento. É na hora séria ou na hora triste,
na hora romântica, ou na hora de tédio
por mais que me encontres fechado em mim mesmo
entras pelo pensamento, - clara fresta, vulnerável
às lembranças do teu desejo.

E quando chegas assim, estremeço até regiões ignoradas
me levanto, e saio, sonâmbulo, a te buscar
a caminhar a esmo ...

Chegas - como uma crise a um asmático, - e então
[preciso de ti
como preciso de ar,
e tenho a impressão de que se não te alcanço, se não
[te encontro,
vou morrer, miserável, como um transeunte nas ruas,
antes que o socorro chegue para salvá-lo ...
alcançar-te é um suplício ...

Teu amor para mim - é humilhante a confissão
-Depois que consegues atingir meu pensamento
tua posse é uma obsessão,
não é amor, é vício ...


JG de Araujo Jorge
Brasil

6.11.2011

Pescadores



A pesca que eu sonhei nas águas dum mar vago
espumas d’oiro e sol, cristas azuis de lua −
é longe desse mar dramático e pressago
por onde em barcos tristes vosso olhar flutua…
É sobre águas serenas
que reflectem a rir as nossas penas,
por onde caminhou o Cristo docemente
na paz cristã dum legendário poente…
Na pesca que eu sonhei iam os pescadores
(não como vós, roucos de dor, as mãos crispadas)
sobre um mar de piedade aberto em flores
que o vento ia esfolhando em pétalas nevadas…

A pesca que eu sonhei que vos importa
a vós os que partis nas roxas manhãs frias
e ouvis as águas a rezar ave-marias
pela alma talvez da noite morta…
a vós que ides cumprindo esse destino
e sabeis entender a voz do vento
e tanta vez errais no mar sem tino
olhando vagamente o céu nevoento…
a vós irmãos das águias que perdidas
vão doidas de saudade pelas brumas
e rezais a chorar de mãos erguidas
os rosários partidos das espumas…

No barco que afinal é o vosso lar das águas,
lançais a vossa rede e as vossas mágoas
ao mar sagrado do Senhor…
E tudo que ele diz − ladainhas de dor,
rezas d’outono, músicas, soluços −
como que o não ouvis se descansais de bruços,
os claros olhos húmidos d’amor…
Mas quando os ventos vão rasgar as velas
que tanto luar diáfano sagrou
e os lúgubres fantasmas das procelas
cortam o ar d’inverno que gelou,
o peito nu, as magras mãos crispadas,
num esforço supremo a combater,
lembrais as vossas noivas desgraçadas
vossos filhos talvez a adormecer,
o adro, a casa branca, as romarias,
as vossas mães velhinhas sem ninguém
e as covas das ondas muito frias
e os outros, vossos pais, que Deus lá tem…
E as águas mugem sobre vós num doido assalto…

Na vossa voz há ecos d’ondas no mar alto,
no vosso olhar há coisas vagas, esquecidas,
tons de lua a morrer no colo duma onda,
vestígios d’ilusões já ressequidas,
o mistério do mar que ninguém sonda…
Levais a cruz de Cristo sobre o peito…
(Campo Santo do mar que não tens cruzes!)
Se o leme parte ao temporal desfeito
e a espuma ri em turbilhões de luzes,
quando caís de joelhos a rezar,
os olhos vagos no pavor da morte,
pensais que vão ficar no vosso lar
bocas sem pão gritando a vossa sorte…

E uma manhã bem roxa de piedade,
vossas viúvas trágicas, de preto,
hão-de beijar-vos loucas de saudade
e arrancar-vos do peito o amuleto…

Meus rudes e trigueiros pescadores,
olhos da cor do mar, único Livro d’Horas!
que não sabeis que quem suporta as vossas dores
é santo e tem a bênção das auroras…
Moradores do túmulo das águas
em que dormis a rir como num berço,
poetas que deitais vossas redes de mágoas
lembrando o lar humilde em que se reza o terço…
Heróis que não sabeis o que é heroísmo,
suicidas serenos d’aventura,
corações de crianças sem egoísmo
a dizer orações à noite escura…

Queria embalar-vos nos meus versos e dizer-vos
que sou um vosso irmão e sinto nos meus nervos
e em todo o meu ser, o vosso ser,
a ânsia de partir, a alegria da volta
sobre as águas erguidas em revolta,
a saudade de tudo que eu maldigo
a dor de errar na treva sem abrigo,
e a sede
de deitar docemente a minha rede,
como um palio de luz por sobre o oceano…
Queria viver todas as vossas dores,
as noites de mar bravo, os poentes de mar plano,
a vossa vida nómada no oceano…


António Patrício

Onda



Se te pudesse dizer o som vivo
da mais pura claridade
e oferecer o azul raro que mora
no centro da onda que o mar não dissipou,
se a palavra que de mim se desprende,
como halo submerso da alga que verde emerge
para a orla que os teus passos demarcaram,
se a música florisse de minhas mãos
para a carícia que o teu corpo merece,
então o poema ganharia a fria calidez
do cristal que o fogo namorou
e a água beberia em teus lábios
a forma dos beijos que para ti
tantos anos em segredo sonhei.


Gonçalo Salvado

Sem título


Imobilidade estival. Sobre a mesa
um livro, compota de cereja
fumegante ainda e, à volta, zumbidos
rasando o silêncio dos corpos e do jarro
ali deixados como coisas de sempre.

À tardinha, o incêndio familiar
no perfil do horizonte. Depois
o ladrar dos cães guardando-nos
o sono. E o desejo informulado
de que nada nada mais acontece no Verão.


Flor Campino

6.10.2011

O Corpo é um verme



Um fato no qual não caibo
De que importa ser belo
Se me aperta no colo
O verme que o sol vomita
Bordado a pão de ló na lapela
Fujo para que não me encontre
Porque quero ser outro desenho
Que ninguém custurou em Paris
Enquanto lhe cuspo o pó da traça
Que trás dentadas de um cão
Desconheço quem mo deu
Não mo passem a ferro
Que a vida é engelhada
Mas se mo deram com gosto
Deixa-o chupar o desgosto
No céu estrelado do chão
Desaperta-mo em gritos de gozo
Em chuva lambendo-o tão bem!


Manuel Feliciano

6.09.2011

Ode à Utopia



Nada sei deconheço e permaneço assim.
Incólume,ausento-me para
outras miragens e todas as ilhas paradisíacas
de semblante nocturno.
Sobrevoo reparo e impaciento-me
a luz acre
doces sóis diferentes de paisagens idílicas
enlaçam-me.
Enternecido contorno atlante
estilete fálico
seduzido pela palmeira erecta do longo manto loiro
deseja-me.
Nada retenho quero e espero assim.
Retiro-me sobrevivo e inquieto
meu bote pardacento
pontifica opaco
a vaga assinalada brava
repõe-me em Amaurotum. (i)
Enobrecido pináculo altivo
gota engrandecida
pela perspectiva acentuada do lírio branco
prende-me.
Restrito arco-íris iluminado
em a ilha
banha os diamantes da praia
rubis, agora
opalas.
Sinto deixo-me chorar e adormeço:

minha nau de proa fenícia
voa e retém-me.
Viajo
todos os recantos são oásis azuis
de tão brancos
e fico
fico por lá!


Paulo Duarte Filipe

Madrugada



O homem se desgasta,
sopro misturado
ao sopro rijo do arado.
Vai cavando.

Madrugada sai da terra,
como um corpo se entreabre
para o orvalho e para o trigo.

O homem vai cavando,
vai cavando a madrugada.


Carlos Nejar
Brasil

6.08.2011

Quero dar-te


Quero dar-te a coisa mais pequenina que houver
bago de arroz
grão de areia
semente de linho
suspiro de pássaro
pedra de sal
som de regato
a coisa mais pequena do mundo
a sombra do meu nome
o peso do meu coração na tua pele.


Rosa Lobato de Faria

6.07.2011

Corredor


Se volto cedo
talvez chegue a tempo
do silêncio.
Ou ainda o som dos passos
livres pela rua que desce,
quase cai, livres,
para continuar plana depois.

Antes,
o som metálico das chaves,
as outras e a que abre.
No trinco, e mesmo assim
o silêncio.
Ou ainda a campainha da loja em frente,
quando o vento lhe agita as franjas coloridas,
esse vento ou um mais alto,
na árvore, cortina da sala.

A porta aberta, passagem
demasiado estreita,
metade da casa
é dos outros.
Do meu lado, no fim
do caminho, só o rádio partido
e a luz dos primeiros dias.


Margarida Ferra

A Anália



Salve dia d'amor sempre jucundo!
Anália encantadora
Nesta risonha aurora
Para me aventurar vieste ao mundo.

Quando assomar no apavonado oriente
Amor te viu fagueiro,
As frechas prazenteiro
Aguçou, e sorriu todo contente:

Fugiu da mãe aos amorosos braços,
E em teu rosto divino
Depor foi, de contino,
Encantos, filtros e amorosos laços.

Assim me enfeitiçaste! - assim rendida
Trago alma e coração,
Que, sem esta prisão,
Nem eu já sei viver nem quero a vida.

Anália, amado bem, tão fausto dia
Celebremos contentes;
E as flores inocentes
Colhamos desta vida fugidia:

O tempo voa, as horas despedidas
Tão ligeiras decorrem,
Murcham tão breve e morrem
Rosas que do prazer não são colhidas!...


Almeida Garrett

6.05.2011

Canto das palavras



Do horizonte recebo o sol
que canta ao infinito sua canção de embalar,
na suavidade das ondas que galgam
sob a espuma o imo do mar.

Entre a oscilação estonteante
(de silêncio e capricho teu)
na torrente que serpenteia dois mundos
ouço o canto na orla de todas as palavras.

E a distância traz-me de volta
sussurros de promessas
rumo ao porvir que não será meu.


Otília Matel

A coroa



Bem sei que é toda de flores
Essa coroa d’amores
Que na frente vais cingir.
Mas é coroa - é reinado;
E a posto mais arriscado
Não se pode hoje subir.

Nesses reinos populosos
Os vassalos revoltosos
Tarde ou cedo dão a lei.
Quem há-de conter, domá-los,
Se são tantos os vassalos
E um só o pobre do rei?

Não vejo, rainha bela,
Para fugir essa estrela
Que os reis persegue sem dó,
Mais que um meio - falo sério:
É pôr limites ao império
E ter um vassalo só.

Alemida Garrett

Bilhete





Não te sei dizer mais.
Depois de tantos versos,
Que te baste o silêncio
Dum poeta ardente,
Que sempre, naturalmente,
Foi além das palavras
Do amor, amando.
Que, em cada beijo,
Selava os lábios que o nomeavam.
Que aprendeu, a sofrer,
Que tudo acontecia
No acontecer.
Que, até nas horas de evasão, sabia
Que a verdadeira vida vive-se a viver.


Miguel Torga

Chego cedo ao café



Chego cedo ao café
à hora a que estão a entrar
as batatas e as cebolas
os legumes dão-me paz


Adília Lopes

6.04.2011

Tempo


Houve um tempo
que os meus olhos sorriam
e o meu coração rejubilava
a cada palavra que de ti vinha
e eu acreditava.

Houve um tempo
que a tua voz era cetim
quando o teu amor apregoavas
sussurrando palavras doces
e aos meus ouvidos as murmuravas.

Ah…efémeros tempos!
A ingenuidade de acreditar que só
a mim dirigias o teu escaldante sentir.

Houve um tempo...


Otília Matel

O rubro da Cereja



Diz
será o rubro da cereja
ou o teu coração?
a pulsar
na noite branca de Titânio?


António Garcia Romão

E posto que viver me é excelente


E posto que viver me é excelente
cada vez gosto mais de menos gente.


Prof. Agostinho da Silva

6.03.2011

Inteira a flor do mar guarda o teu nome



inteira a flor do mar guarda o teu nome
junto à proa da vaga e do coral
só os dedos das algas o afagam
com a seda e a sede em sua pele

só nos calhaus ondula a hora cheia
troncos parados sobre a terra vasta
fulgem abraços altos soletrados
por um tempo maior de gosto certo

só com tintas da tarde o oceano
te desenha nas praias sem farol
sem falcão sem fragata sem fogueira

só o caule do sol sustenta o dia
quando o sândalo cresce e mancha a brisa
encostada ao vitral que te nomeia


Olga Gonçalves

Esta tristeza que me envolve agora



Esta tristeza que me envolve agora
Nem me deixa sequer pensar em mim…
Cai na terra o silêncio; e nesta hora
A minha dor vai descansar enfim.

O sol ao longe todo o céu colora
De nuvens cor de fogo e de rubim;
E as árvores também, como quem ora,
Rumorejam nas sombras do jardim.

E no silêncio desta tarde linda
Paira na terra uma doçura infinda,
Asas leves de sonho e de agonia…

Morrem ao longe as nuvens incendiadas,
Quando o silêncio e a sombra de mãos dadas
Amortalham a luz, ao fim do dia…


Anrique Paço d'Arcos

6.01.2011

Abandono



Não digas nada, deixa apenas
as mãos entregues ao calor das minhas
e olha-me nos olhos como quando
nos fitávamos, pássaros surpresos
do próprio voo, adolescente e luminoso.
Ambos sabemos desde há muito: a vida
é uma longa paciência e não há forma
de viver ao abandono dos que amamos.
Sobrevivamos, pois, no fio dos dias
que nos restam ainda, se é que o tempo
nos favorece como dantes.
E mantenhamos as mãos coladas,
olhares fitos um no outro, meu amor.

Torquato da Luz

Poética


Que é a poesia?
uma ilha
cercada
de palavras
por todos os lados

Que é o poeta?um homem
que trabalha o poema
com o suor dos eu rosto
um homem
que tem fome
como qualquer outro
homem

Cassiano Ricardo
Brasil

Menino da rua


Por vielas e por ruas
Vagueias de mãos nuas
Levas do passado ternura
Trazes no coração amargura
Caminhas pela cidade
Em busca de pão e calor
Alguém te descobre e com amor
Ameniza a tua dor
Cambaleando voltas a ti
P’ro teu abrigo de jornal
Sarcasticamente ris do mal
Que a vida fez de ti
Em silêncio, choras teu fado
Ris-te da vida e da morte…
Gritas ao Mundo, que surdo
Não ouve teu lamento.


Ana Maria Lima