9.30.2011

palavras bonitas como a palavra mágica.


palavras bonitas como a palavra mágica.
nascente uma palavra moça, recorrente.

palavra menstrual, rosada.
a rigor o mês assiste o vocabulário
da permuta,

a palavra volúpia teu sexo repleto de pássaros
notas mágicas de teus olhos cheios de plan(e)tas
muitas palavras por dizer ou rasgar
quando comes os frutos ensopados;

quando do fruto tens palavra sentir: formas e dores;
e caber na forma palavra nutrir.


João Tala
Angola

9.23.2011

Grito



De ti que inventaste
a paz
a ternura
e a paixão
o beijo
o beijo fundo intenso e louco
e deixaste lá para trás
a côncava do medo
à hora entre cão e lobo
à hora entre lobo e cão.

De ti que em cada ano
cada dia cada mês
não paraste de acender
uma e outra vez
a flor eléctrica
do mais desvairado
coração.

De ti que fugiste à estepe
e obrigaste
à ordem dos caminhos
o pastor
a cabra e o boi
e do fundo do tempo
me chamaste teu irmão.

De ti que ergueste a casa
sobre estacas
e pariste
deuses e linguagens
guerras
e paisagens sem alento.

De ti que domaste
o cavalo e os neutrões
e conquistaste
o lírico tropel
das águas e do vento.

De ti que traçaste
a régua e esquadro
uma abóboda inquieta
semeada de nuvens e tritões
santidades e tormentos.

De ti que levaste
a volupta da ambição
a trepar erecta
contra as leis do firmamento.

De ti que deixaste um dia
que o teu corpo se cansassse
desta terra de amargura e alegria
e se espalhasse aos quatro cantos
diluido lentamente
no mais plácido
silente
e negro breu.

De ti
meu irmão
ainda ouço
o grito que deixaste
encerrado
em cada pétala do céu
cada pedra
cada flor.
O grito de revolta
que largaste à solta
e que ficou para sempre
em cada grão de areia
a ressoar
como um pálido rumor.
O grito que não cansa
de implorar
por amor
e mais amor
e mais amor.

José Fanha

9.19.2011

Clara Onda



Este amor em meadas e triciclos
que nunca se divide, confluindo
e torna noite, este sapato findo
e o firmamento, silencioso ciclo.

Este amor em meadas, infinito.
Em meadas de orvalho, desavindo,
em meadas e quedas, rugas, trincos
e rusgas, trinos, pios e sóis contritos.

Este amor me retece e configura.
Tem pressa de crescer, fogo calado.
Apenas queima, quando não se apura.

Parece interminável, quando tomba.
E só se apura, quando despertado.
Dissolvido me solve em clara onda.


Carlos Nejar
Brasil

9.17.2011

Antilírica heróica



o que é isto a voz suturada nas
quatro esquinas da boca o que é isto
são os olhos o corpo sua eterna
ebulição?

o que é isto as mãos as mãos crescem
como as folhas rompem a pele
rouca do clamor: sua
ferocidade?

o que é isto o que é isto fere-se
a larva o presságio dos vivos: terra
que estala atrás dos
lábios?

o que é isto o hálito a língua
do vento frequente no rosto na sombra
nas pernas do herói: e o herói vai
o herói vai morto.


David Mestre
Angola

9.16.2011

Decálogo



o húmus na esperança da terra:
eis o pão!

a carícia nos dedos do vento:
eis a água!

a liberdade na paz dos homens:
eis o trabalho!

a estrela no murmúrio da fonte:
eis o pensamento!

o amor no leite da mulher:
eis a poesia!

o direito no sol do mundo:
eis a justiça!

o equilíbrio na paz dos astros:
eis a ciência!

a harmonia no silêncio do mar:
eis a música!

a luz no calor do sangue:
eis a pintura!

o segredo na voz da floresta:
eis a imaginação!


António Cardoso
Angola

9.15.2011

Adormecer assim


Adormecer
assim: inclinado
sobre um rio
em repouso.
A mão esquerda
caída em palma
no crânio; a boca
no ombro no aroma
da pele; o joelho
e a mão direita
na coxa no canteiro ainda
molhado. Acordar assim: ouvir
o breve adágio do corpo amado
a respiração pouco a pouco mais tumultuosa
sob os lençóis subitamente visitados
pelo sol da manhã.


Casimiro de Brito

9.14.2011

Canto integral do amor


Cegos os olhos, continuarias de qualquer forma, presente,
surdos os ouvidos, e tua voz seria ainda a minha música,
e eu mudo, ainda assim, seriam tuas as minhas palavras.

Sem pés, te alcançaria a arrastar-me como as águas,
sem braços, te envolveria invisível, como a aragem,
sem sentidos, te sentiria recolhida ao coração como
o rumor do oceano nas grutas e nas conchas.

Sem coração, circularias como a cor em meu sangue,
e sem corpo, estarias nas formas do pensamento
como o perfume no ar.

E eu morto, ainda assim por certo te encontrarias
no arbusto que tivesse suas raízes em meu ser,
- e a flor que desabrochasse murmuraria teu nome.


JG de Araújo Jorge
Brasil

9.11.2011

Beija-me



Beija-me com os beijos da tua boca.
Tuas carícias melhores do que o vinho.
E sê-me luz. Luz total. E água.
Profunda água pelo fogo enamorada,
terra que grita exasperada plenitude.
E frescura. Fecundidade.
Árvores frondosas, ramagens,
verde iluminado,
primavera, enfim.

Que aroma de ti parte? Olor a fruto?
Tua pele é jasmim?
Flor de pura laranjeira?
Pétala de alfena e de nardo?
Oh! Tudo! Tudo em ti é perfume
quando ondeias o corpo lindo!
Teus lábios destilam mel,
teus cabelos a essência feliz do rosmaninho.
És carne, apenas?
Mas sem ti como
explicar a razão de haver no mundo claridade?


Gonçalo Salvado

9.08.2011

Afirmas que brigamos


Afirmas que brigamos. Que foi grave.
Que o que dissemos já não tem perdão.
Que vais deixar aí a tua chave
E vais à cave içar o teu malão.

Mas como destrinçar os nossos bens?
Que livro? Que lembranças? Que papel?
Os meus olhos, bem vês, és tu que os tens.
Não te devolvo – é minha – a tua pele.

Achei ali um sonho muito velho,
Não sei se o queres levar, já está no fio.
E o teu casaco roto, aquele vermelho
Que eu costumo vestir quando está frio?

E a planta que eu comprei e tu regavas?
E o sol que dá no quarto de manhã?
É meu o teu cachorro que eu tratava?
É teu o meu canteiro de hortelã?

A qual de nós pertence este destino?
Este beijo era meu? Ou já não era?
E o que faço das praias que não vimos?
Das marés que estão lá à nossa espera?

Dividimos ao meio as madrugadas?
E a falésia das tardes de Novembro?
E as sonatas que ouvimos de mãos dadas?

De quem é esta briga? Não me lembro.


Rosa Lobato Faria

9.07.2011

Vinha Podada



Sonha a vinha podada.
Sonha calma, gelada,
Pâmpanos de primavera universal.
Sonha, numa recôndita modorra,

Uma aberta desforra
Em vides de tamanho natural.
Sonha como quem dorme repousado
Na certeza da seiva e da razão;

Sonha como quem sabe que o seu fado
Tem apenas as leis da ocasião.
Sonha contra as muralhas altas, ocas,

Que são nuvens de pé sobre o horizonte:
Porque o céu há-de abrir-se quando as bocas
Beberem mosto como numa fonte.


Miguel Torga

Retrato



(NUM ÁLBUM)

Ah!, despreza o meu retrato
Que lhe eu queria aqui pôr!
Tem medo que lhe desfeie
O seu livro de primor?

Pois saiba que por despique
Eu sei também ser pintor:
Co’esta pena por pincel,
E a tinta do meu tinteiro,
Vou fazer o seu retrato
Aqui já de corpo inteiro.

Vamos a isto. - Sentada
Na cadeira moyen âge,
O cabelo en châtelaines,
As mangas soltas. - É o traje.

Em longas pregas negras
Caia o veludo e arraste;
De si com desdém régio
Com o pezinho o afaste ...

Nessa atitude! Está bem:
Agora mais um jeitinho;
A airosa cabeça a um lado
E o lindo pé no banquinho.

Aqui estão os contornos, são estes,
Nem Daguerre lhos tira melhor.
Este é o ar, esta a pose, eu lho juro,
E o trajar que lhe fica melhor.

Vamos agora ao difícil:
Tirar feição por feição;
Entendê-las, que é o ponto,
E dar-lhe a justa expressão.

Os olhos são cor da noite,
Da noite em seu começar,
Quando inda é jovem, incerta,
E o dia vem de acabar;

Têm uma luz que vai longe,
Que faz gosto de queimar:
É uma espécie de lume
Que serve só de abrasar.

Na boca há um sorriso amável.
Amável é... mas queria
Saber se é todo bondade
Ou se meio é zombaria.

Ninguém mo diz? O retrato
Incompleto ficará,
Que nestas duas feições
Todo o ser, toda a alma está.

Pois fiel como um espelho
É tudo o que nele fiz,
E o que lhe falta - que é muito,
Também o espelho o não diz.

Almeida Garrett

Dedicatória


Teus dedos
vadios
colhendo flores
na renda
dos meus

recordarei de
pois quando
noutros dedos
tocava
os teus


David Mestre
Angola

9.06.2011

Entardecer na praia da luz



Espreguiçados, os ramos
das palmeiras filtram
a luz que sobra
do dia. É já noite
nas folhas. O branco
das paredes recolhe
o sangue e o vinho
das buganvílias
e hibiscos. Bebe-os
de um trago: saberás
que, mais do que cegueira, a noite
é uma embriaguez perfeita.


Albano Martins

9.05.2011

Na ampla praça há apenas plátanos.



Na ampla praça há apenas plátanos.
Nem crianças a correm de tão fria,
nem estátuas a comovem bronzeadas.
Das margens secas, com ilhas e outras casas,
janelas, se as há, são quase setas.
O frio perfurou tábuas e latas.
Um vento seco corta junto aos olhos.

O espaço é recomposto agora mesmo: na praça
estou na sombra dos plátanos
e tudo vejo com vontade e amor.
Mas não chega a presença ou a vontade.
Outros não chegam, ou aparecem apressados.
Nomes se referem. Desenha-se um olhar.
Apenas gesto, memória, sombra rara.

Envolvo-me na praça. Os plátanos cobrem-me.
Das margens sempre vem algum calor.
Renascem os olhos. Os plátanos movem-se.
As casas iluminam-se. Um grito
cobre a sombra e assim anima
a ampla solidão de todos nós.


Eduardo Guerra Carneiro

Baixa-mar



Do que deixei de ser restam sinais
evidentes, audíveis, nesta praia.
Pegadas que se perdem nas demais.
A memória do vento em tua saia.

Restam dois dedos de água que regressa,
inacabada, à fonte mais propícia
do mar inicial. Âncora tensa.
Aroma, arado, um barco de cortiça.

Mas resta, sobretudo, areia solta.
A limalha e o sal - concha vazia
do que foi espuma e canto à nossa volta.

Nafta a arder nas dunas onde eu via
antigamente, alerta, uma gaivota
mudar o mundo, anunciar-me o dia.


António Luís Moita

9.03.2011

Outras vozes me chegam da cratera


outras vozes me chegam da cratera
de uma flor de uma casa de uma agulha
e murmuram os nomes do verão
e ancoram seus barcos de veludo

outras vozes se vestem de infintio
abertíssiomo chão sem armaduras
vacilantes os pés na orvalhada
semente da maçã à noite ao escuro

outras vozes arriscam outro grito
um turbilhão de aragem delirante
na bárbara visão impossuída

outras vozes se escondem na loriga
com que marte se cobre quando entende
certas vozes da tua mão na minha


Olga Gonçalves

9.02.2011

Ideário para a criação



Quando, em ti próprio, ouvires algum combate
do sonho em luta com a sua própria alma
e o mundo te parecer maior que a vida
e a vida te parecer a velha estrada
onde só tu não perseguiste o sonho,
defende, de ambos, o que for vencido.

Quando, à tua beira, houver um perseguido
e o escárneo se abater sobre o que ele pensa
e o mundo inteiro o perseguir mentindo
uma mentira maior que a dessa ideia,
defende-a como tua antes que o mundo
esmague em si próprio a chama em que se ateia.

Quando, como hoje, os crimes forem tantos
que as praias sequem no desdém das ondas,
e o melhor homem for um criminoso
voltando ansioso ao local do crime,
e o sangue nem lhe suje a ansiedade
porque não há mais sangue que ciências loucas,
grita aos ventos da morte que os traíram -
e na terra se ouça que a verdade é falsa
e só eram verdade os que partiram.


Jorge de Sena