10.31.2011

Cavernas


O que dizer das criaturas, miniaturas,
No breu das grutas, que sintaxe, algo
Como um labirinto de versos, paralaxe,
Extracto de escuridão ou de solidão?

Estar apartado da vida, asceta, monge,
Sequestrado de si próprio, em dúvida
Na prece, sendo caverna este silêncio
E seu bulício, esfinge e o que ele finge?

Uma parelha de poesia, duas cotovias,
Três árvores ao redor e quatro tambores,
Essas leiras, medidas e mesuras, números...

Momentos tão de quedas e de vertigens,
Flutuantes almas, quantos impregnados,
Lugares de luz, de escuro e seu inverso...


Filinto Elísio
Cabo Verde

10.30.2011

Boa-noite


Boa-noite. Venho de lume à
brisa de terra.
Trouxe o frasco de hormónio
achei-o na farmácia do tempo.

Boa-noite pedacinho. Outro desejo e
dois sorvos. Avivarei mulher em ti
com fogo novo. Noitinha, senhora
súbita alegria de doer onde salgava
o útero. Mais um sorvo e saltam tuas rosas
outro sorvo pode extinguir a angústia
reunida nos teus ovários.


João Tala
Angola

Trompas uterinas / Braços do mundo



ouço o recomeço acostumada seara
de grãos rompidos

ainda. as grandes mãos do mundo
fixam sementes, algarismos

palavras cervicais
húmus sobre terra húmida,

é esse o caminho que atinge ovários
pela boca da labareda.


João Tala
Angola

10.29.2011

Comentário alcorânico



Quanto aos poetas, os que erram seguem-nos.
Não tens visto como eles vagueiam pelos vales
E como dizem isso que não praticam? - Alcorão



Vagueio pelos vales a falar sozinho:
não me lavo, não rezo, não me lembro
de Deus: apenas fumo o meu cachimbo
e saboreio Deus que sabe a fumo

Devagaroso a falar à pressa deliro
e digo o que não faço e faço o que não digo,
contraditório, incoerente, obsessivo,
mas verdadeiro eco de mim próprio

Que Deus me dê a força da fraqueza
que verga mas não quebra e endireita
mais dúctil do que a vara mais fibrosa .

Que Deus me dê os vales mais obscuros,
lá onde a vista alcança só beleza
ao fundo da paisagem dos teus olhos


António Barahona

10.28.2011

À luz do estúdio



Ao observar o retrato
de Oscar Wilde e do amante,
reparo na luz do estúdio
entrando na fotografia
que fixou a figura
de dois belos homens.
Fecho o livro sobre a mesa,
na jarra preta as flores
unem as pétalas ao cair da tarde.


Isabel de Sá


10.25.2011

Exorcismo


Levanta-te, não chores.
Tens de saber que às vezes é difícil
matar o que nos mata,
ir aguçando o gume do cutelo
e movê-lo depois, logo em relâmpago,
até que o monstro seja degolado
e não fique sequer uma gota de sangue,
da cicuta voraz que lhe corria
pelas veias tão geladas, sob a pele
que terias beijado quase a medo
em busca de um sabor que fosse o fogo
e o ar e a água,
mas era só veneno adocicado,
daquele que vicia sem parecer viciar
e nos deixa sem cura a vida inteira.

Levanta-te, bem sabes,
desde o tempo dos contos infantis,
que todo o mal procura disfarçar-se
em rostos como aquele,
na perfeição volátil desse abismo
a que chamam beleza e vai ardendo
em lânguidos sorrisos e olhares
feitos de pura seda, seduzindo
espíritos como o teu,
demasiado inocentes ou perversos
para desconfiar da eternidade
ou para resistir à luz fosforescente
que, obedecendo às leis da natureza,
sempre soube atrair até à morte
o alucinado voo das borboletas.

Levanta-te, vá lá, não tenhas medo
de apertar o gatilho as vezes necessárias
para que tudo morra - os estertores
da tua alma ou do teu corpo
mesmo assim doem menos, acredita,
que o travo torvo dos piores remorsos.
E se vires que é preciso
rasgar dentro de ti, antes de serem escritos,
os mil e um poemas
que haverias de ler, talvez sem esforço,
à flor daquela face, não hesites,
porque a felicidade tem um preço
e os versos, quaisquer versos, são apenas
a memória infiel deste vento que move
as árvores lá fora enquanto é noite,
mas que às primeiras horas da manhã
deixará elevar-se um nevoeiro
tão espesso e esbranquiçado, que o amor
será nesse momento uma palavra baça
que nada te dirá, a ti ou a ninguém

Fernando Pinto do Amaral

10.24.2011

Fim de Outono


Fim de outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...

Tudo seco pelas hortas,
Grandes lágrimas no chão
Nem uma flor pelos montes,
Tudo numa quietação
Soluça numa oração
O triste cantar das fontes.

Fim de outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...

A terra fechou as portas
Aos beijos do sol ardente,
E agora está na agonia...
Valha à terra agonizante
A Santa Virgem Maria!

Fim de Outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia

Fernanda de Castro

10.23.2011

Enseada do olhar



Basta-me o seu sorriso.
Não preciso
de mais nada.
Basta-me, ao acordar,
a enseada
do seu olhar.

Basta-me o desafio
da sua boca,
mar acolhendo o rio
que me liberta quanto me sufoca.

Torquato da Luz

Naquela Praça



Hei-de encontrar-te ali
naquela praça que talvez já não exista.

Praça da palavra.
Praça da canção.
Praça de bandeiras a beijar
os primeiros odores da primavera.

Hei-de encontrar-te um dia
ao alto da cidade
partilhando pão
azeitonas
e poema.

Ali
naquela praça que talvez já não exista
hei-de encontrar-te um dia
e seguiremos
abraçando
as laranjeiras
desfraldando
uma vez mais
a nossa voz ao vento.


José Fanha

10.22.2011

Amiúde




No vale dos afectos
ninguém está seguro:
Mingua a lembrança,
Esquece-se o rosto,
Retorna-se ao eu,
Os lábios secam, as palavras dormem, os sonhos dispersam-se, a
presença ausenta-se, há o lago de que não se vê o fundo -

E apenas as pequenas ilusões
- um café, o cigarro, a limonada -
imitam dois corações unidos ...


Raul de Carvalho

10.21.2011

10.19.2011

Poema para ti


Não me perguntes por que te amo
pergunta-me antes, por que não te amaria
e eu te responderei:
— Não te amaria, se não houvesse em ti
este sol por despertar, esta sede por matar,
e esta interminável doçura que te habita.

Eu já te amava e te adorava
antes mesmo da invenção da palavra.

Creio que não sabes,
mas tu és esta chama fria
esperando ser encarnada
na alma...És este sentir
que constrói mundos
e move corações...

Não me perguntes por que te amo
pergunta-me sim, o quanto te amo
e eu te responderei:
— Não existe palavra tão intensa
em que caibas completamente, pois tu és
este vazio ainda por preencher, o qual não se
basta nunca...

Sabes,
por vezes um simples olhar teu
desperta um lento fogo em mim
que sem demora enche-me de atrasos
e logo sei o quanto estás distante...
Mas não te preocupes
que em meu olhar
ainda reluzem as tuas pegadas
denunciando-te sob o horizonte...

Eusébio Sanjane
Moçambique

10.18.2011

A cobra



E então o Senhor disse à serpente:

Serás maldita e deslizarás.
Todos os animais domésticos e ferozes te
odiarão. Rastejarás, serás
motivo de escândalo para as outras criaturas.
Terra comerás quotidiana.
Alimentar-te-ás das presas que tomares
por tua manha. Abrirás
desmedidamente a boca para comer ―
pois o fruto defeso hás revelado.

Habitarás da terra os lugares quentes,
contra a neve e o gelo não prevalecerás,
pois te arrefeço o sangue;
o inverno te será adverso e assim
todos os rigores da mulher e sua descendência
que, com pavor dos teus dentes astutos,
procurará esmagar-te a cabeça
e fracturar-te a espinha com o calcanhar
e assim a teus filhos e aos filhos
de teus filhos. E ―
pois inventaste a nudez ―
a pele despirás pela vida fora.

Meus desígnios goraste e o pecado
inauguraste ― pelo que
tuas próprias escamas te serão prisão,
o parto te será redondo e desconforme,
te secará um pulmão,
crescerás em peçonha e em vergonha

e assim seja até à
consumação dos séculos.

A.M. Pires Cabral

Noutro lugar


Abre a janela do coração
e deixa que a madrugada
o tome por inteiro.
Não tenhas medo.
Não faças nada,
senão isso primeiro.

Depois debruça-te e espera.
Hás-de ouvir a voz do mar,
vinda no vento, como era
outrora, noutro lugar.

Verás então que nada está perdido
e a vida recupera o seu sentido.


Torquato da Luz

Eu Sou Português Aqui



Eu sou português
aqui
em terra e fome talhado
feito de barro e carvão
rasgado pelo vento norte
amante certo da morte
no silêncio da agressão.

Eu sou português
aqui
mas nascido deste lado
do lado de cá da vida
do lado do sofrimento
da miséria repetida
do pé descalço
do vento.

Nasci
deste lado da cidade
nesta margem
no meio da tempestade
durante o reino do medo.
Sempre a apostar na viagem
quando os frutos amargavam
e o luar sabia a azedo.

Eu sou português
aqui
no teatro mentiroso
mas afinal verdadeiro
na finta fácil
no gozo
no sorriso doloroso
no gingar dum marinheiro.

Nasci
deste lado da ternura
do coração esfarrapado
eu sou filho da aventura
da anedota
do acaso
campeão do improviso,
trago as mão sujas do sangue
que empapa a terra que piso.

Eu sou português
aqui
na brilhantina em que embrulho,
do alto da minha esquina
a conversa e a borrasca
eu sou filho do sarilho
do gesto desmesurado
nos cordéis do desenrasca.

Nasci
aqui
no mês de Abril
quando esqueci toda a saudade
e comecei a inventar
em cada gesto
a liberdade.

Nasci
aqui
ao pé do mar
duma garganta magoada no cantar.
Eu sou a festa
inacabada
quase ausente
eu sou a briga
a luta antiga
renovada
ainda urgente.

Eu sou português
aqui
o português sem mestre
mas com jeito.
Eu sou português
aqui
e trago o mês de Abril
a voar
dentro do peito.

Eu sou português aqui


José Fanha

10.17.2011

A caminhada



Nessa mata ninguém mata
a pata que vive ali,
com duas patas de pata,
pata acolá, pata aqui.

Pata que gosta de matas
visita as matas vizinhas,
com as suas duas patas
seguidas de dez patinhas.

E cada patinha tem,
como a pata lá da mata,
duas patinhas também
que são patinhas de pata.


Sidónio Muralha

10.15.2011

Como são belos


Como são belos os teus seios!
Foram feitos
à medida das minhas mãos.
Pousa-os
na minha boca e conta-me
a tua história.
Não tens história?
Não tens noite nem vazio nem praia
branca?
Fala-me então
do sol, da migração dos pássaros, da mansidão
das estrelas - fala-me de ti antes de possuíres
um nome, uma história.
Sim
em qualquer parte
lançaremos os nossos corpos na relva;
alfaias efémeras; armas exíguas
ardidas na guerra.
Como são belos os teus seios!
Trémulas palavras.
Deixa que neles eu me queime como quem
se deita num rio.
Sinto a terra mover-se.
Iluminas as águas e as estrelas.
O percurso é longo.
O silêncio montanhoso.
Debruço-me
na tua solidão.


Casimiro de Brito

A diferença que há


A diferença que há entre os estudiosos e os poetas
é que aqueles passam a vida inteira com o nariz num assunto
a ver se conseguem decifrá-lo, e estes
abrem um livro, lêem três páginas, farejam as restantes
[nem sequer todas] e sabem logo do assunto
o que os outros não conseguiram saber. Por isso é que os estudiosos têm raiva dos poetas,
capazes de ler tudo sem ter lido nada
[e eles não leram nada tendo lido tudo].
O mal está em haver poetas que abusam do analfabetismo,
e desacreditam a gaya scienza.


Jorge de Sena

10.14.2011

Soneto à tua volta



Voltaste, meu amor... enfim voltaste!
Como fez frio aqui sem teu carinho....
A flor de outrora refloresce na haste
que pendia sem vida em meu caminho.

Obrigado... Eu vivia tão sozinho...
Que infinita alegria, e que contraste!
-Volta a antiga embriaguez porque voltaste
e é doce o amor, porque é mais velho o vinho!

Voltaste... E dou-te logo este poema
simples e humilde repetindo um tema
da alma humana esgotada e envelhecida...

Mil poetas outras voltas celebraram,
mas, que importa? – se tantas já voltaram
só tu voltaste para a minha vida...


JG de Araújo Jorge
Brasil

10.11.2011

3


Aberta
estende
reclama
ternura

Frágil
de palma voltada

Quando se fecha
sobe no braço
é arma apontada


António Borges Coelho

Já não sabes como os filmes de papel



As letras azuis cor de mármore
são as veias cinzentas
que me atraem...
são cabelos ocos entrelaçados
por areia
e um cheiro a maresia
com rodapés de escarlate
e salmão
Sopro por entre cadeiras
assentes no chão
Razei a soma cabal
do esguio
e lânguido rosto
de cristal...
que se esgueirava
por entre dedos
e tijoleiras
As carnes com que prendia
os teus seios eram aquelas
que sabiam a sal
e onde navegam por
entre pedras soltas
e saltitantes esqueletos
ainda rebolas

e contornas
com grande perícia
os sinais de interrogação,
esses são órbitas,
teus livros
rasgados
com páginas amareladas
Vives em casas entreabertas
de medos, em que pintas
as tuas neuroses
com detalhes perfeccionistas,
em que tentas esculpir
as luzes psicóticas
dos barcos à deriva
cambaleias nessa névoa de cinzel
com barras tricolores
onde espelhos teus
encerram os meus temores...
Já não sabes trilhar
com remos partidos
Já não sabes
como os filmes de papel
És igual às outras
do princípio até mim...


Fernando Ramires

10.09.2011

Rosa murcha


_ «Quarenta anos fez ontem (sexta-feira
«Da Paixão do Senhor!) a mulher doce
«Que há oito dias para aqui me trouxe
«Da minha verde e maternal roseira.

«Amou com vivo amor... e está solteira!
«Sua trança doirada desdoirou-se,
«E chora como as fontes! Antes fosse
«Em tranquilo convento ingénua freira!

«Ontem, no seu jantar sem convidados,
«Sem sobremesa, silencioso e curto,
«Só conversava com o relógio velho...

«E erguendo os olhos, d'água marejados,
«Para mim, murcha rosa, olhava a furto,
«Como se eu fosse em frente dela um espelho!

Eugénio de Castro

10.08.2011

Geografia



A oriente
o horizonte escarlate
da dor humana
a ocidente
o crepúsculo
no fim do percurso
a norte
o Senhor da Morte
a sul
o vento do deserto
em cima
o olho do mundo
em baixo
o sonho indestrutível

Ernesto Sampaio

10.07.2011

Lucinda


Ergue a frente, lírio,
Ergue a branca frente!
O astro do delírio
Já surgiu no oriente.

Vês, o sol ardente
Lá caiu no mar;
A frente pendente
Ergue a respirar!

Alvo é o luar,
Teu alvor não cresta;
A hora de gozar,
De viver é esta.

Longa foi a sesta,
Longo o teu dormir;
Ergue a branca testa,
Tempo é de surgir!

Já se abre a sorrir
Tua boca linda...
Despertar, sentir
Ou sonhar é ainda?

Sonho que não finda
Será o teu sonhar,
Se a dormir, Lucinda,
Te sentes amar.


Almeida Garrett

10.05.2011

Algumas palavras




Algumas palavras são mais que o som.
Soltam-se delas lâmpadas, por vezes gritos.
Palavras que demoram na boca
com o sabor da manhã de Outubro, o claro gosto
da terra húmida, castanha até doer.

E há noites em que se ouve, além das horas,
um chamar por nós, um apelo
comovido. Podemos afirmar: são irmãos,
são mães, são companheiras. Mas é outra a face
revelada. Todo um ruído quente
quase desanimado. Um ténue vento
queimando-se nos vidros. Posso dizer:
em noite assim alguns morrem, muito antes
de saberem o nome e a voz. De quem
esse clamor? Saber que na antiga casa
as portas se abriram, um ou outro quarto
vai iluminar-se e começa o dia!

Há palavras lança-chamas,
Conheço algumas que nos fazem viver,
por não serem simples som
mas estradas incendiadas por dentro,
duplos corações batendo com o calor
da certeza do dia que se segue.
Assim me apoio às palavras,
procuro a tudo dar um nome,
e em noite destas - salientes, defumadas,
com vozes que nos chamam - sou um corpo
novo. Quebrando o meu silêncio,
povoo alguns espaços de alegria.
Rasgo o papel. Irado, desejoso
de saber até onde, quando, como,
o corpo vai. Nas palavras me encontro.
Cansado, quase morto, à espera,
sempre à espera. Nas palavras vivo,
denuncio ou ataco. Há um grande sol
à nossa espera. Quantos somos?


Eduardo Guerra Carneiro

10.02.2011

O bar


Andei com Maiakovsky a servir
sumos de ananás num Bar de putas.
Por essas noites, a noite cheirava a mijo
e a ódio. Sim, a mijo e a ódio.
Um homem costumava entrar
e perguntar pelo seu irmão.
Nunca estava. O seu irmão
nunca estava e, então, o homem
desaparecia
sem mais interrogações.
Um dia houve uma guerra num vaso de flores
e na noite desse dia o Bar fechou.
Reabrimos na noite seguinte
muito orgulhosos da nossa guerrazinha
que continuava, mas agora
de certo modo longe do nosso local de trabalho.
Voltámos a servir sumos de ananás
regularmente. Maiakovsky
não usava meias desde a guerra
e as putas quase sempre comentavam isso.
Constou nessa altura
que tinha morrido como um valente
o homem que costumava entrar
e perguntar pelo seu irmão.
Confirmámos isso quando o irmão dele passou a frequentar o Bar
sem fazer uma única pergunta.
De vez em quando tínhamos de pôr fora
os clientes que se embebedavam.
Alguns, no auge da noite,
pretendiam ser Deus,
outros,
faziam discursos que irritavam os chulos
diziam coisas tremendas
e um deles era um general de cavalaria
que ao terceiro copo já queria vender as esporas.
No último verão houve a crise do ananás
e passámos a servir batidos de morango.
As putas adoravam.
Maiakovsky olhava de soslaio umas vezes,
outras, pelo cantinho do olho
e fazia-me sinais.
Eu levantava geralmente os cinzeiros e as gorjetas
Enquanto ele passava um pano húmido
Pelo tampo das mesas.
Dividíamos desta maneira o nosso trabalho
porque ele era alérgico ao cheiro das notas
e a mim dava-me prazer
ajudá-lo no que pudesse.
Uma tarde veio num jornal que ele tinha morrido.
Nem ele próprio acreditou.
Ficou desiludido, muito desiludido mesmo
e confessou-mo.
Não chegou a haver entrevistas, fotógrafos, nada.
Ele fez as malas calmamente
(e, no entanto, esqueceu-se de uma gravata),
abraçou-me e partiu com
lágrimas nos olhos.
Então, sozinho, abri o Bar apenas
uma ou outra noite em que senti saudades.
Por vezes entravam turistas americanos
que me ofereciam somas terríveis
pela cadeira onde ele costumava sentar-se
nos nossos dias de folga.
Quase nunca chegava a responder.
Eles percebiam o meu olhar e não diziam nada,
não insistiam mais.
O mesmo acontecia com as putas,
que deixaram de fazer-me perguntas.
Creio que agora estou desempregado.
Fechei o Bar definitivamente.
Muita coisa mudou embora as noites
continuem hoje a cheirar
a mijo e a ódio.
Faleceu o general
que negociava as esporas ao terceiro copo,
Deus caiu abaixo da sua bebedeira,
e eu acabei por vender a cadeira do meu camarada
que está agora algures no Colorado atrás de uma secretária
num Boss Office de uma fabriqueta de pastilha elástica.
Estou mais novo
e vou sobrevivendo a todas estas recordações.
Mas quando agora saio por aí, de noite, roído de saudades,
já nem mesmo as putas,
as mesmas putas,
me reconhecem.


Joaquim Pessoa

Contra a corrente



Contra a corrente subimos os rios
à procura do lugar onde os sonhos
nascem. Contra a corrente rompemos
o véu e do anel de fogo já saímos.
Contra a corrente estamos sempre
quando rios se formam em anéis de fogo
e véus de bruma surgem. Contra
a corrente chegamos a lugares onde o sonho
sobe. Contra a corrente,
outra vez, ainda, tentamos a sorte:
anular alguns círculos na água,
corpo-a-corpo com a morte,
p'ra desfazer o feitiço da serpente.


Eduardo Guerra Carneiro