7.09.2007


Ámen


No circo cheio de luz

Há tanto que ver!...

«Senhores!»

— Grita o palhaço da entrada,

Todo listrado de cores —

«Entrai, que não custa nada!»

«À saída é que se paga»

(E eu sou aquele palhaço

Com listras!, e estardalhaço,

Chamando público...)

Na arena,

Está toda a companhia.

E o público contracena

Com a arena,

Como a arena com o público,

Agonias de alegria...

Uma bailarina dança.

A bailarina que dança

Já correu França e Aragança

Dançando do mesmo modo

Com todo o seu corpo todo.

Mas sempre, de cada vez,

Seu pés,

Seus voláteis pés,

Tiveram diverso modo

De raptar da mesma forma

Seu corpo todo!

Os seus movimentos de hoje

São, talvez, iguais aos de ontem,

Aos olhos de quem não vê

Que o gesto feito uma vez

Já se não faz como fez.

Ai!, a vida!

E eu que ouvi que a vida é um dia!

Mas acaba e principia

A cada instante do dia...

(E eu também sou bailarino:

Também danço!;

Também não tenho descanso;

Também cá vivo fingindo

Que só vivo repetindo,

Muito embora

Saiba como a toda a hora

Vario e crio,

Ruo e fluo,

Como um rio...)

Na plateia, um homem bêbado

Tem olhos vítreos do vinho.

Seus olhos vítreos

Pegaram-se às pernas ágeis

Da bailarina.

Seu olhar que foi subindo

A foi despindo...

E ali a cara de todos

Aquele bêbado a goza,

Gemendo, arquejando, rindo...

... De tal modo,

Que, súbito, o circo todo

é um grande leito em festa, a receber

O espasmo daquele homem

Que possui essa mulher.

Que mentira e que verdade

Que é a vida!

(E eu sou, também, esse bêbado

Que a força de desejar

Transformou em realidade

O seu desejo.

Na verdade...,

Sim, na verdade, não vejo

Porque me não enganar...)

O acrobata, que belo,

Cinturado de amarelo!

Que belo

Ser acrobata!

Seu corpo é de oiro e de prata,

Com fogo e gelo a correr...

Pendurado do trapézio,

Crucificado no ar,

Causa angústia e faz prazer

Ver esse corpo bailar,

Voar

Entre a vida e a morte...

E é belo ser assim forte,

Ficando assim delicado.

Ora esse alado elegante

Que sorri com tal desplante

Tem, no entanto,

Há já tanto!,

Uma loucura com ele

Que o impele:

Quer subir

Até onde puder ir;

Além do que puder ir;

Mais e mais!

Seus belos saltos mortais

Desenham cada vez mais

Voos cada vez mais trágicos.

Até que ele há-de chegar

À tristíssima vitória

De não ter mais que avançar.

Então...,

Ele há-de, ainda, sorrir.

Ora verão!

E há-de deixar-se cair.

E há-de deixar-se cair,

Do sétimo céu ao chão.

Ai!, a vida!

Poema da Tentação...

(E eu sou aquele acrobata:

Não subi nem me exibi;

Não me tapei de amarelo,

Nem meu corpo é de oiro e prata,

Nem eu sou belo...

Tenho dó de não ser belo!

Mas sou aquele acrobata.)

Ri, palhaço!

O palhaço entrou em cena,

Ri, cabriola, rebola,

Pega fogo à multidão.

Ri, palhaço!

Corpo de borracha e aço,

Rebola como uma bola,

Tem dentro não sei que mola

Que pincha, emperra, uiva, guincha,

Zune, faz rir!

Ri, palhaço!

Ri..., ri de ti para os outros,

Ri dos outros para ti,

Ri de ti para ti... ri!,

Ri dos outros para os outros...,

Ri, arre!, ri, irra!, ri!

Não!, que não!, que eu não lamente

Quem então, mesmo que o tente,

Não deixa de se exprimir

Tão brutalmente.

Palhaço, ri!

Eu não sei ter dó de ti:

Por miserável que seja,

Não se tem dó do que é belo.

(... Porque,

Será preciso dizê-lo?,

Também sou esse palhaço

Feito de borracha

E aço...)

Ai!, a vida!

Que trambolhões na subida,

Que ascenções pela descida...!

Entre os mil espectadores,

Encolhido,

Pequenino,

— Meu menino, ino, ino... —

Sim, fixo aquele menino.

Seus olhos, duas estrelas,

Acesinhos como velas

E maiores

Que os dos mais espectadores,

São de Menino Jesus

Que dá lição aos doutores.

Esses olhos fazem luz

Sobre todo o circo... São

Duas varas de condão.

Eis como, a luz que eles dão,

Tudo, em redor, se enriquece

De outra significação:

Que linda história de fadas

Se não vai desenrolando!,

Com princesas encantadas

Desencantadas,

E jovens reis escalando

Que muralhas invencíveis

Ao ritmo de árias terríveis,

Enquanto um príncipe excêntrico

Engole espadas e chamas,

Vem divertir o seu povo,

Trava prélios

Com dragões,

Gigantes,

Bruxas,

Anões,

—Criações

Dum mundo novo...

Ai!, a vida!

Maravilhosa historieta!

(E eu sou aquele menino:

Sou poeta...)

Mas em frente,

Do outro lado da arena,

Certa cara mascarada

Foca a cena:

Mascarada de silêncio,

De serenidade e enigma.

Bailados e acrobacias,

Amazonas e corcéis,

Músicas, luzes, e cores,

— Não me parecem que existam

Naqueles ouvidos surdos

E naqueles olhos foscos

De lágrimas,

Sangue,

Suores...

Quem é que ali sabe a história

Destes olhos esvaziados.

Dessa testa de sepulcro,

Daqueles lábios selados?

Poque está ali essa máscara,

Sozinha na multidão,

Fechada no seu caixão

De solidão e silêncio?...

E ai, minha mãe e meu pai!,

Todos que me quereis... ai

Que eu sou também, afinal,

Todo esse frio mortal...!

... Porque eu sou tudo!, — afinal.

E, mais do que bailarino,

Clown, acrobata, menino,

Bêbado ou esfinge, sou

A terra,

O chão que eles pisam,

E o pó que sobe e os envolve...

Moro lá em baixo, enterrado,

Muito lá em baixo!, e calado.

Pairo por cima ondulando,

Ando

No ar

Espalhado...

Ai!, a vida!

Que a vida não tem limites,

E quem vive não tem paz,

Menino, por mais que sonhes!,

Por mais que desejes, bêbado!,

Palhaço, por mais que grites!,

Por ais que vás, acrobata!,

Por mais que vás...!

Ai!, a vida!

... Assi, me surge tão bela,

Tão digna de ser vivida,

Sorvida

Até se esgotar,

Que eu sei que é faminto dela

Que me hei-de matar.


José Régio