7.16.2007


Toada de Portalegre



Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Morei numa casa velha,

Velha, grande, tosca e bela,

À qual quis como se fora

Feita para eu morar nela...

Cheia dos maus e bons cheiros

Das casas que têm história,

Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória

De antigas gentes e traças,

Cheia de sol nas vidraças

E de escuro nos recantos,

Cheia de medo e sossego,

De silêncios e de espantos,

- Quis-lhe bem, como se fora

Tão feita ao gosto de outrora

Como ao do meu aconchego.

Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De montes e de oliveiras,

Do vento soão queimada,

(Lá vem o vento soão!,

Que enche o sono de pavores,

Faz febre, esfarela os ossos,

Dói nos peitos sufocados,

E atira aos desesperados

A corda com que se enforcam

Na trave de algum desvão...)

Em Portalegre, dizia,

Cidade onde então sofria

Coisas que terei pudor

De contar seja a quem for,

Na tal casa tosca e bela

À qual quis como se fora

Feita para eu morar nela,

Tinha, então,

Por única diversão,

Uma pequena varanda

Diante duma janela.

Toda aberta ao sol que abrasa,

Ao frio que tolhe, gela,

E ao vento que anda, desanda,

E sarabanda, e ciranda

De redor da minha casa,

Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Era uma bela varanda,

Naquela bela janela!

Serras deitadas nas nuvens,

Vagas e azuis da distância,

Azuis, cinzentas, lilazes,

Já roxas quando mais perto,

Campos verdes e amarelos,

Salpicados de oliveiras,

E que o frio, ao vir, despia,

Rasava, unia

Num mesmo ar de deserto

Ou de longínquas geleiras,

Céus que lá em cima, estrelados,

Boiando em lua, ou fechados

Nos seus turbilhões de trevas,

Pareciam engolir-me

Quando, fitando-os suspenso

De aquele silêncio imenso,

Eu sentia o chão fugir-me,

- Se abriam diante dela,

Daquela

Bela

Varanda

Daquela

Minha

Janela,

Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Na casa em que morei, velha,

Cheia dos maus e bons cheiros

Das casas que têm história,

Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória

De antigas gentes e traças,

Cheia de sol nas vidraças

E de escuro nos recantos,

Cheia de medo e sossego,

De silêncios e de espantos,

À qual quis como se fora

Tão feita ao gosto de outrora

Como ao do meu aconchego...

Ora agora,

Que havia o vento soão

Que enche o sono de pavores,

Faz febre, esfarela os ossos,

Dói nos peitos sufocados,

E atira aos desesperados

A corda com que se enforcam

Na trave de algum desvão,

Que havia o vento soão

De se lembrar de fazer?

Em Portalegre, dizia,

Cidade onde então sofria

Coisas que terei pudor

De contar seja a quem for,

Que havia o vento soão

De fazer,

Senão trazer

Àquela

Minha

Varanda

Daquela

Minha

Janela

O testemunho maior

De que Deus

é protector

Dos seus

Que mais faz sofrer?

Lá num craveiro que eu tinha,

Onde uma cepa cansada

Mal dava cravos sem vida,

Poisou qualquer sementinha

Que o vento que anda, desanda,

E sarabanda, e ciranda,

Achara no ar perdida,

Errando entre terra e céus...,

E, louvado seja Deus!,

Eis que uma folha miudinha

Rompeu, cresceu, recortada,

Furando a cepa cansada

Que dava cravos sem vida

Naquela

Bela

Varanda

Daquela

Minha

Janela

Da tal casa tosca e bela

À qual quis como se fora

Feita para eu morar nela...

Como é que o vento soão

Que enche o sono de pavores,

Faz febre, esfarela os ossos,

Dói nos peitos sufocados,

E atira aos desesperados

A corda com que se enforcam

Na trave de algum desvão,

Me trouxe a mim que, dizia,

Em Portalegre sofria

Coisas que terei pudor

De contar seja a quem for,

Me trouxe a mim essa esmola,

Esse pedido de paz

Dum Deus que fere... e consola

Com o próprio mal que faz?

Coisas que terei pudor

De contar seja a quem for

Me davam então tal vida

Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Me davam então tal vida

- Não vivida!, mas morrida

No tédio e no desespero,

No espanto e na solidão -

Que a corda dos derradeiros

Desejos dos desgraçados

Por noites do vento soão

Já várias vezes tentara

Meus dedos verdes suados...

Senão quando o amor de Deus

Ao vento que anda, desanda,

E sarabanda, e ciranda,

Confia uma sementinha

Perdida entre a terra e céus,

E o vento a traz à varanda

Daquela

Minha

Janela

Da tal casa tosca e bela

À qual quis como se fora

Feita para eu morar nela!

Lá no craveiro que eu tinha,

Onde uma cepa cansada

Mal dava cravos sem vida,

Nasceu essa acàciazinha

Que depois foi transplantada

E cresceu, dom do meu Deus!,

Aos pés lá da estranha casa

Do largo do cemitério,

Frente aos ciprestes que em frente

Mostram os céus,

Como dedos apontados

De gigantes enterrados...

Quem desespera dos homens,

Se a alma lhe não secou,

A tudo transfere a esprança

Que a humanidade frustrou:

E é capaz de amar as plantas,

De esperar nos animais,

De humanizar coisas brutas,

E ter criancices tais,

Tais e tantas!,

Que será bom ter pudor

De as contar seja a quem for.

O amor, a amizade, e quantos

Sonhos de cristal sonhara,

Bens deste mundo, que o mundo

Me levara,

De tal maneira me tinham,

Ao fugir-me,

Deixado só, nulo, atónito,

A mim, que tanto esperara

Ser fiel,

E forte,

E firme,

Que não era mais que morte

A vida que então vivia,

Auto-cadáver...

E era então que sucedia

Que em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Aos pés lá da casa velha

Cheia dos maus e bons cheiros

Das casas que têm história,

Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória

De antigas gentes e traças,

Cheia de sol nas vidraças

E de escuro nos recantos,

Cheia de medo e sossego,

De silêncios e de espantos,

- A minha acácia crescia.

Vento soão!, obrigado

Pela doce companhia

Que em teu hálito empestado,

Sem eu sonhar, me chegava!

E a cada raminho novo

Que a tenra acácia deitava,

Será loucura!..., mas era

Uma alegria

Na longa e negra apatia

Daquela miséria extrema

Em que eu vivia,

E vivera,

Como se fizera um poema,

Ou se um filho me nascera.



José Régio